Imagine um perfume que se transforma como um camaleão ao longo do dia: é cítrico vibrante pela manhã, vira um chipre quente e confortável durante a tarde e, depois, um oud sensual e profundo ao cair da noite. Pense em um chatbot que te ajuda a entender suas preferências olfativas melhor do que você jamais conseguiria sozinho. Ou ainda, uma fragrância que resgata o perfume da sua avó – descontinuado há tempos. Isso não é uma fantasia distante: é o universo da perfumaria movido por inteligência artificial, onde algoritmos já têm a capacidade de criar perfumes cada vez mais personalizados. A IA já revolucionou outros setores da beleza. De diagnósticos de qualidade da pele online aos testes virtuais de maquiagem, o setor abraçou de vez a inovação digital. Minha própria experiência com inteligência artificial me levou a um mergulho profundo no universo das recomendações de perfumes. Desafiei o ChatGPT a criar uma lista personalizada com base nas minhas preferências: aromas doces, com um toque oud e amadeirado, mas ainda sedosos. O resultado? Assustadoramente preciso. A curadoria incluiu Oud Satin Mood da Maison Francis Kurkdjian, Oud Bouquet da Lancôme, Velvet Rose & Oud da Jo Malone London. Oud Nude da Guerlain e Mumbai Noise da Byredo – todas fragrâncias que, por acaso, já fazem parte da minha penteadeira. Perfumes sempre seguiram o ritmo dado por um mestre perfumista. Perfume, na verdade, é considerado uma arte: um ofício emocional, impregnado de memória e técnica – como uma sinfonia composta para os sentidos. Durante anos, nós, apaixonados por fragrâncias, vagamos por corredores de lojas, seduzidos por notas e histórias criadas que ressoam de forma única e pessoal. Ainda que essa revolução esteja apenas começando, as casas de fragrâncias já percebem o potencial da inteligência artificial para transformar sua arte. Mas será que a IA pode realmente criar bons perfis olfativos e categorias inéditas? Apoiar perfumistas? Fazer novas combinações de notas? Ressuscitar fórmulas e ingredientes há muito esquecidos? Os inovadores acreditam que sim. Casas de fragrâncias consagradas, como a DSM-Firmenich e a Givaudan – responsáveis, respectivamente, por perfumes como Black Opium Illicit Green da YSL Beauty e Bois Pacifique de Tom Ford –, junto a empresas disruptivas como Osmo e EveryHuman, estão mapeando a nova fronteira das fragrâncias geradas por inteligência artificial. A ferramenta Carto, da Givaudan, desenvolve amostras instantâneas de acordes criados por perfumistas – o que acelera o processo de desenvolver uma fragrância, enquanto seu Virtual Aroma Synthesizer (VAS) conecta preferências dos consumidores aos narizes (como são chamados os perfumistas) por meio de análise de dados. Já a tecnologia Myrissi, baseada na neurociência, prevê as emoções que uma fragrância irá despertar, garantindo que ela seja mais do que apenas um cheiro: é um estado de espírito. “A IA permite que nossos perfumistas mantenham o foco na criação, mesmo com o aumento contínuo das restrições”, afirma Johan Chaille de Nere, diretor de transformação digital da Givaudan. “Os perfumistas de hoje enfrentam limitações cada vez maiores em seu processo criativo: restrições regulatórias e de custo, estabilidade das fórmulas, exigências específicas dos clientes quanto a ingredientes, e até impactos emocionais específicos no consumidor. Sem a ajuda de algoritmos para apoiar o trabalho do perfumista, torna-se difícil manter o foco no cerne da profissão – que é criar fragrâncias únicas, com identidade própria e que realmente conquistem os consumidores.” A Givaudan começou a utilizar a tecnologia Myrissi em 2023 como uma ferramenta baseada em neurociência e na influência das cores na forma como nosso cérebro responde aos aromas. “Decodificar e prever o impacto emocional de uma fragrância significa que podemos compreender melhor suas implicações para os consumidores, porque a diferença entre gostar de um perfume e adorá-lo é puramente emocional”, afirma Johan Chaille de Nere. O poder da IA vai ainda mais longe e chega, até mesmo, na ressurreição de flores e botânicos extintos. A marca americana de fragrâncias Future Society firmou parceria com a empresa Ginkgo Bioworks para decodificar os perfis genéticos de flores desaparecidas, como a Shorea cuspidata (com acorde amadeirado, originária da ilha de Bornéu) e a Macrostylis villosa (um arbusto florido da África do Sul), criando perfumes que misturam nostalgia e inovação. Já a Osmo, outra empresa disruptiva que promete “dar aos computadores um senso de olfato”, usa IA para teletransportar amostras de aromas de todo o mundo e gerar novos ingredientes em laboratório, como a Glossine (um floral inspirado no jasmim) e a Fractaline (que combina notas de violeta, cítricos e gengibre). Todos esses avanços parecem extremamente futuristas, mas o fundador e CEO da Osmo (startup de olfato digital e inteligência artificial que trabalha para ler, mapear e reproduzir cheiros), Alex Wiltschko, garante que seu Principal Odor Map (POM), tecnologia que mapeia moléculas odoríferas que, impulsionada pela IA, permite que químicos desenvolvam novos ingredientes com o dobro da velocidade e metade do custo dos métodos tradicionais. “Também somos capazes de criar novos ingredientes olfativos que atendem a critérios de segurança, biodegradabilidade, estabilidade e performance”, afirma Alex. Em abril, a Osmo lançou sua casa de fragrâncias orientada pela ciência, utilizando o POM como base para criações. Perfumes desenvolvidos com o apoio da inteligência artificial já estão chegando às prateleiras. O Bois Pacifique de Tom Ford foi criado com o uso das ferramentas da Givaudan, com o objetivo de evocar as notas da região de Big Sur, na Califórnia. Já o eau de toilette Phantom, da Paco Rabanne, utilizou dados que mediam a atividade cerebral elétrica de millennials para identificar as combinações de ingredientes que mais os atraíam. A Prada incorporou um acorde de jasmim aprimorado por IA em seu grande sucesso Paradoxe, enquanto a YSL Beauty usou inteligência artificial para realizar testes às cegas com clientes. O modelo treinado sugeria, em apenas 20 minutos, três fragrâncias YSL de acordo com as preferências de cada pessoa. “Comprar fragrâncias com a ajuda da IA pode se tornar uma experiência mais intuitiva e personalizada. Imagine uma ferramenta que escaneia seu histórico olfativo ou preferências de humor para listar sugestões antes mesmo de você chegar à loja”, diz Natalie Guselli, diretora de beleza e comercial da Liberty London. Ainda assim, ela ressalta que, embora a IA seja uma aliada poderosa para facilitar o processo de compra, a conexão humana e a experiência em loja continuam sendo essenciais. “A magia do varejo está na expertise humana. A IA pode nos guiar, mas a escolha final sempre dependerá de como a fragrância nos faz sentir.” Para os perfumistas, a inteligência artificial traz tanto promessas quanto cautela. O mestre perfumista da Louis Vuitton, Jacques Cavallier-Belletrud, reconhece seu potencial revolucionário. “É uma vantagem enorme em termos de velocidade. Trinta anos atrás, eu escrevia tudo à mão e levava de dez a 15 minutos só para calcular o custo de um perfume. Criar dez testes significava escrever dez fórmulas separadas. A IA muda tudo isso”, afirma. O mestre perfumista da Guerlain, Thierry Wasser, também está aberto ao futuro da IA na perfumaria. “Não usamos inteligência artificial no momento, mas não vejo por que não deveríamos nos familiarizar com ela”, diz. “Ela pode ser uma ajuda incrível, tanto no processo criativo quanto na gestão regulatória – além de nos auxiliar a nos expressar melhor.” Francis Kurkdjian, diretor criativo de fragrâncias da Parfums Christian Dior e criador da marca Maison Francis Kurkdjian, concorda: “Estou convencido do potencial da IA para realmente revolucionar a perfumaria. Ela certamente auxiliará os perfumistas. Em algum momento, a IA será capaz de criar fragrâncias: é apenas uma questão de tempo”. No entanto, Kurkdjian ressalta que o toque do perfumista continuará sendo insubstituível. “A inteligência artificial pode misturar aromas, mas não compreende o contexto cultural, a ressonância emocional, nem possui a sensibilidade artística por trás de um grande perfume. Estou aberto a explorar como a IA pode complementar o meu trabalho, já que ela pode nos ajudar a descobrir novos ingredientes ou prever o comportamento molecular. No entanto, a alma da perfumaria está na criatividade e na intuição humanas, que são fundamentais no processo criativo.” A história é semelhante para David Benedek, fundador e diretor criativo da BDK Parfums: “Cada etapa do nosso processo criativo – do conceito inicial à formulação final – é guiada pela criatividade e expertise humanas. Embora a IA possa ser uma ferramenta poderosa, acredito que ela cria uma certa distância, um tipo de lacuna que rompe a conexão genuína e íntima que construímos com nossos clientes”. Assim, embora as opiniões permaneçam divididas, há um ponto em comum entre perfumistas e criativos: a IA ainda precisa do toque humano – ela é uma ferramenta, não uma substituição. “A inteligência artificial não funciona sozinha, depende inteiramente da qualidade das informações que fornecemos. Ela precisa ser treinada e enriquecida, considerando milhões de parâmetros”, afirma Cavallier-Belletrud. Já Alex Wiltschko, da Osmo, acrescenta: “Estamos confiantes de que a IA terá um papel fundamental em prever se os consumidores irão amar ou ignorar uma criação olfativa. Um dos maiores (e pouco falados) desafios da indústria da perfumaria é que a maioria dos produtos fracassa. Acreditamos que a combinação transformadora de dados de alta qualidade, boas previsões via IA e design olfativo cada vez mais criativo será uma maré crescente que elevará toda a criatividade do setor”. O grande desafio está em equilibrar a precisão da tecnologia com a magia insubstituível do toque humano. Nesse novo mundo, a IA não está tomando o pincel do artista, está ampliando a tela. “A IA expande os limites”, conclui Francis Kurkdjian. “Esse é o sonho de todo criativo: olhar muito além do horizonte.”