Maria Bethânia é a ‘águia nordestina’, aguerrida e indomada, em livro que analisa os primeiros voos da intérprete

Maria Bethânia em 1965 na estreia do espetáculo 'Opinião' Reprodução / Instituto Augusto Boal ♫ OPINIÃO SOBRE LIVRO Título: Maria Bethânia, primeiros anos – Da cena cultural baiana ao teatro musical brasileiro Autor: Paulo Henrique de Moura Cotação: ★ ★ ★ ★ ♬ Ao voltar embevecido para casa após assistir a um dos maiores espetáculos da carreira de Maria Bethânia, Dentro do mar tem rio (2006 / 2007), Chico César escreveu poema que fez chegar à artista através de e-mail enviado na manhã de 20 de março de 2007. Nos versos do poema, transformado em música apresentada pela cantora 14 anos depois no show Claros breus (2021), Chico personifica Bethânia como “águia nordestina de asas como velas abertas ao céu”. Essa imagem da águia nordestina, aguerrida e indomada, se concretiza ao longo das 208 páginas do livro Maria Bethânia, primeiros anos – Da cena cultural baiana ao teatro musical brasileiro, escrito pelo jornalista Paulo Henrique de Moura e publicado pela editora Letra e Voz. Produto gerado a partir de tese de mestrado defendida pelo autor em 2024, o livro traça os primeiros voos de Maria Bethânia em palcos de Salvador (BA), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP) de 1963 até 1968, mas com ênfase nos shows feitos pela artista entre 1964 e 1965. Embora embaçada nas páginas iniciais pela necessidade de fazer introdução com os objetivos e métodos da dissertação de mestrado, a narrativa ganha fôlego e altitude conforme o livro avança. Sem constituir um entrave para a degustação do texto por seguidores da artista, a linguagem acadêmica evidencia com profusão de dados e fontes a consistência da tese defendida por Moura. O livro resulta necessário até pela escassez de material bibliográfico que detalhe a trajetória de Maria Bethânia nos palcos, sobretudo nessa fase inicial. Artista refratária a biógrafos e sempre disposta a alimentar aura sagrada em torno de si, se portando como esfinge a rigor nunca decifrada na amplitude da importância que adquiriu na cena cultural brasileira, Bethânia sempre criou narrativa romanceada sobre esse início de carreira, em especial sobre a vinda da Bahia para o Rio de Janeiro, em janeiro de 1965, para substituir Nara Leão (1942 – 1989) no espetáculo Opinião, encenado desde 1964 com arquitetura construída na fronteira entre show e musical de teatro. Com sutileza, o autor evidencia nas páginas 110 e 111, por meio das reproduções de depoimentos pregressos de Augusto Boal (1931 – 2009) e Caetano Veloso, que Bethânia veio na realidade fazer um teste, a convite da produção do Opinião, sem ter chegado ao Rio com a certeza absoluta de que iria de fato substituir Nara. Em contrapartida, na página 120, ao analisar as formas faciais da artista no espetáculo, Moura alimenta o mito de que Bethânia estreou no Opinião com 17 anos – idade enfatizada pela artista em entrevistas na qual romanceia esse momento decisivo na carreira – quando, na verdade, a intérprete, nascida em 18 de junho de 1946, já tinha 18 anos quando chegou ao Rio na companhia de Caetano Veloso, designado pelo pai como guardião da irmã em terras cariocas. Capa do livro 'Maria Bethânia, primeiros anos – Da cena cultural baiana ao teatro musical brasileiro', de Paulo Henrique de Moura Divulgação Feitas tais ressalvas, o livro cumpre o prometido ao descortinar (na medida do possível) os bastidores dos espetáculos feitos por Bethânia ao longo de 1964, em Salvador (BA), e ao mostrar, a partir da análise de espetáculos posteriores como Arena canta Bahia – encenado em São Paulo em 1965 no embalo do sucesso de Opinião – e É um tempo de guerra, espetáculo que transitou por São Paulo (SP) e Salvador (BA), também em 1965. Foi quando a águia nordestina, audaz, começou a mostrar que não se deixaria capturar pelo mercado e pela vontade de diretores, como o supracitado Augusto Boal, se recusando a ser enquadrada na moldura da “cantora de protesto” erguida pela mídia e incentivada por Boal a partir da interpretação de Carcará (João do Vale e José Cândido, 1964) no espetáculo Opinião. É que, na interpretação incisiva de Bethânia, Carcará alçou voo inimaginado na voz suave de Nara Leão e, por conta disso, a cantora baiana passou a ser carimbada com o rótulo adicional “de protesto”. Insubmissa aos quereres de produtores e empresários, a águia nordestina pegou o caminho de volta para a Bahia e, na volta ao Rio, traçou a rota particular de um voo de altitude ainda hoje inalcançável pela maioria das cantoras brasileiras. Ainda cruzando os céus do Brasil em 2025, 60 anos após a estreia no Opinião, tendo as asas da águia como velas abertas nos palcos iluminados, o longo voo artístico de Maria Bethânia teve ponto de mutação no show Comigo me desavim (1967) – espetáculo no qual a cantora foi guiada pela primeira vez por Fauzi Arap (1938 – 2013), diretor que se tornaria recorrente na trajetória da artista nos palcos – e em diversas apresentações em boates da cidade do Rio de Janeiro (RJ). A partir daí, a intérprete assentou as bases definitivas do próprio repertório, marcando posição em canções politizadas, mas também dando voz a canções de amor e a músicas de era do rádio. Guerreira ao modo dela, Bethânia nunca participou de guerrilhas ou movimentos, o que jamais a impediu de ser vista pela ditadura militar de 1964 como uma agente dos ideais de liberdade. Paulo Henrique de Moura triunfa na narrativa do livro ao provar que a existência em si de Maria Bethânia foi um ato político naqueles anos rebeldes. Contudo, o livro extrapola a tese e se prova com alto valor documental por compilar e analisar informações até então dispersas sobre os primórdios da trajetória da artista na Bahia. Ainda que os depoimentos dado por Bethânia ao autor sejam a rigor pouco elucidativos sobre esses shows iniciais, tendo somente o efeito de validar a tese aos olhos do público e da mídia, Paulo Henrique de Moura fez trabalho jornalístico alentado, conciliando pesquisas em jornais e revistas da época com entrevistas com nomes fundamentais como Rodrigo Velloso (irmão da cantora), Djalma Corrêa (1942 – 2022), Gilberto Gil e Roberto Santana, testemunhas dos espetáculos feitos por Bethânia ao longo de 1964 no Teatro Vila Velha, em Salvador (BA). Aliás, ter tido acesso ao acervo desse teatro já lendário da capital da Bahia favoreceu o autor na apresentação de dados sobre o shows Nós, por exemplo... (espetáculo coletivo que reuniu Bethânia, Caetano, Gal Costa, Gilberto Gil e Tom Zé, entre outros nomes), Nova bossa velha & velha bossa nova (outro espetáculo coletivo, feito nos moldes do anterior, com elenco similar) e Mora na filosofia, este o primeiro show solo de Bethânia. Maria Bethânia em 1965 em ensaio do show 'Opinião', pelo qual ganhou o indesejado rótulo de 'cantora de protesto' Funarte / Acervo Augusto Boal Antes desses três espetáculos, Bethânia debutara nos palcos da Bahia em 1963 – aí sim com os míticos 17 anos – em montagem de Boca de ouro (1960), texto do dramaturgo Nelson Rodrigues (1912 – 1980) encenado em Salvador (BA) sob direção de Álvaro Guimarães (o Alvinho), com trilha sonora assinada por Caetano Veloso. No breu, quando a cena se abria, Bethânia cantava Na cadência do samba (Ataulfo Alves e Paulo Gesta, 1962), sucesso recente do ano anterior. “Eu cantava atrás das cortinas. Era um prólogo do espetáculo”, ressalta Bethânia em depoimento a Paulo Henrique de Moura no qual enfatiza desconsiderar a participação em Boca de ouro como a estreia nos palcos. Para Bethânia, a estreia de fato foi em Nós, por exemplo..., espetáculo de agosto de 1964 que tem o programa reproduzido no livro. Ali, ao cantar sambas de Batatinha (1924 – 1997) e Noel Rosa (1910 – 1937), compositores que se tornariam recorrentes nos roteiros dos show da artista (Bethânia chegaria a gravar em 1966 um EP com músicas de Noel em um primeiro movimento para fugir do rótulo de “cantora de protesto”), a artista já começou a demarcar território. Com a mesma formação do antecessor Nós, por exemplo..., Caetano Veloso, Gilberto Gil e Alcyvando Luz (1937 – 1998) dirigiram Nova bossa velha & velha bossa nova, show apresentado em novembro de 1964. A alta potência de Maria Bethânia na encenação desses dois shows coletivos pavimentou o caminho natural para que o grupo decidisse que a cantora seria a primeira a merecer um show solo. Dito e feito. E assim, em dezembro de 1964, a águia nordestina alçou o primeiro voo solo com o show Mora na filosofia, orquestrado sob direção de Caetano Veloso. No roteiro, Bethânia teatralizou músicas como Favela (Heckel Tavares e Joracy Camargo, 1933) e O morro (Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri, 1964), marcando posição política – e cabe lembrar que um tempo de guerra já se iniciara com a revolução de 31 de março daquele ano de 1964 – entre músicas como Ave Maria no morro (Herivelto Martins, 1942) e Chão de estrelas (Silvio Caldas e Orestes Barbosa, 1937). “Ali já tinha uma assinatura minha de toda uma dramaticidade (...) que me atraía”, reflete Bethânia em depoimento para o livro. E o resto foi uma história que ganhou dimensão nacional a partir de fevereiro de 1965 com a estreia da cantora no espetáculo Opinião (a narrativa romanceada de Bethânia crava 13 de fevereiro como o dia da estreia, mas anúncios e notas de jornais indicam que já houve apresentações com a cantora em 10 e 11 de fevereiro). No livro Maria Bethânia, primeiros anos – Da cena cultural baiana ao teatro musical brasileiro, Paulo Henrique de Moura compila dados e apresenta pensamento coerente e bem fundamentado sobre a força política da intérprete e o incômodo provocado entre os agentes da repressão pelo primeiros voos dessa intrépida águia nordestina que jamais se deixou abater enquanto ecoava o canto do povo brasileiro. ♬ P.S,: em outubro de 2024, o colunista do g1 avalizou a dissertação de mestrado de Paulo Henrique de Moura, escrevendo um texto – feito de graça, sem receber qualquer remuneração por isso – que figura em uma das orelhas do livro Maria Bethânia, primeiros anos – Da cena cultural baiana ao teatro musical brasileiro.