Fim de ano chegando e vai começar o frenesi da Mega-Sena da virada. Aquela que paga mais que CDB do Banco Master, mais que emenda secreta do Centrão, mais que contrato com parente de juiz do Supremo. É dinheiro que não acaba mais. Teremos em dezembro um monte de gente zanzando por aí com um volante de loteria na mão e cara abobalhada, fazendo planos mirabolantes: uma bolada para os parças, um qualquer para o primo mala — dez mil, e se reclamar, serão cinco —, um agrado para o porteiro gente boa, uma mariola para o chefe mala. Alguns vão resolver a vida de muitos, outros vão sair para comprar Coca-Cola com casco de Pepsi e nunca mais serão vistos pela família e nem os amigos. Manual do hipocondríaco digital: com a internet e as redes sociais, as doenças e as paranoias caem no nosso colo O neocafajeste de hoje vai de sandália, shorts, camisa de manga curta, bolsa de couro e um onipresente boné do MST Todo mundo sonhando com os seis números. Menos eu, que — infelizmente — não tenho o dom da esperança delirante ou da fé desvairada. Me ensinaram desde cedo que do céu só cai chuva, e mesmo assim é preciso estar atento, porque às vezes chove canivete. O mais sensato é não dar mole e se preparar para o pior. Outra: se você precisa de sorte, é porque não se esforçou o suficiente. Como podem ver, foi uma educação leve, solta, quase dionisíaca. Deu no que deu. Não é só na Mega-Sena que não levo fé. Não acredito em cassinos, jogos do tigrinho, bingos, bicho, rifa de quermesse ou mesmo palito premiado no Chicabon. Lendo assim, parece até que sou um sábio pragmático, uma fada sensata, um desses seres iluminados que estão acima dos sentimentos ordinários. Só que não. No jogo, tenho um ponto fraco: os bolões. É aí que o meu pragmatismo racional vira pó e surgem, imponentes, a paranoia e o despeito: e se o vencedor é o pessoal do bolão do qual não participei? Um ganhador de Goiânia, Teresina ou Maricá, tô nem aí. O pânico é quando anunciam que o vencedor é do Rio. Tenho pesadelos com amigos e conhecidos passando na minha frente em limusines ou iates, acenando com taças de espumante e jogando as cinzas do charuto na minha cara. “Quem mandou não participar?”, gritam em coro, entre gargalhadas maquiavélicas e aviõezinhos com notas de cem dólares. Sei que a chance de ganhar é de uma em cinquenta milhões. Mas também sei que existe um tipo de azar que ignora estatísticas e tem endereço certo: a turma que não entrou no bolão dos amigos. A ciência deveria estudar o sarcasmo dos números. Não acredito em sorte, mas já percebi que a urucubaca pode cair em você feito chuva de canivete. Não pode dar mole. Por isso dezembro é o mês de entrar nos bolões. Todos eles: na firma, no clube, no bar. Fico sabendo da existência e já peço para entrar na hora. Lembram aquele copeiro que ficou de fora do bolão no Cervantes? Tem uns dez, quinze anos. Os funcionários que participaram levaram meio milhão cada um. O copeiro, coitado, até entrou no rateio, mas precisou tirar seus dez reais para a passagem e saiu. Ficou de fora. Está até hoje se lamentando. Comigo, não! Talvez o ressentimento e a paranoia sejam coisa de gente reles e vil, e os leitores tenham uma alma zen, impassível diante da súbita fortuna alheia e a oportunidade perdida. São seres elevados, sem dúvida. Que inveja. Só me resta resolver o problema do pragmatismo seletivo e do rancor espaçoso na psicanálise. E, por via das dúvidas, entrar também no bolão dos psicanalistas.