A crise no fornecimento de energia em São Paulo reacendeu a discussão sobre a concentração do controle sobre concessões de distribuição elétrica nas mãos do governo federal, um debate impulsionado pela prefeitura da capital paulista há pelo menos dois anos. No centro está um projeto de lei que nasceu de articulações diretas do prefeito Ricardo Nunes (MDB) com Brasília e que busca alterar a lógica atual de fiscalização e renovação desses contratos. Leia mais: Aneel inicia processo que pode levar à caducidade de concessão da Enel após apagão Veja também: Enel sinaliza que está disposta a enterrar fios mediante 'estratégia compartilhada' com poder público A questão ganhou novo fôlego após a passagem de um ciclone extratropical, que provocou rajadas próximas a 100 km/h, derrubou a rede elétrica e deixou mais de dois milhões de consumidores sem luz. Uma semana depois, ainda havia endereços da capital às escuras. Paralelamente à cobrança por uma solução imediata para a crise, Nunes e o governador Tarcísio de Freitas intensificaram a pressão política sobre o Palácio do Planalto. Após determinação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os dois se reuniram com Alexandre Silveira para alinhar uma estratégia conjunta e solicitar que a agência reguladora dê início à análise sobre a perda da concessão. O movimento, porém, dialoga com uma agenda mais ampla, iniciada anos antes da mais recente crise. Essa agenda começou a ganhar forma em 2023, após sucessivos blecautes que atingiram a capital e a região metropolitana. A avaliação da prefeitura era de que, apesar de ser diretamente afetada pelas falhas no serviço, a administração municipal tinha pouca margem de atuação, já que não integra a relação jurídica central das concessões federais. Em abril de 2024, Nunes levou pessoalmente ao então presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, uma proposta de mudança na legislação, defendendo maior protagonismo dos municípios nesse setor. Da articulação surgiu um projeto apresentado pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP), que propõe redistribuir competências hoje concentradas na União. “A ideia partiu do prefeito Ricardo Nunes, diante dos problemas que tivemos em novembro por causa do péssimos serviço prestado pela Enel que deixou milhões de pessoas sem luz. Apresentamos em abril, pois já se tratava de algo insustentável. Os prefeitos precisam ter mais poder de ação, pois acabam injustamente acusados de não agirem. Conseguimos aprovar graças a ajuda do líder Isnaldo e do presidente Arthur Lira, que teve muita sensibilidade”, disse Baleia Rossi em outubro de 2024. O que diz o projeto O texto, aprovado na Câmara e estacionado no Senado, prevê que prefeituras e o Distrito Federal passem a acompanhar de forma direta a execução dos contratos de distribuição de energia em seus territórios, com poder para realizar inspeções e apontar descumprimentos. Além disso, estabelece que os entes locais sejam formalmente consultados antes de licitações, prorrogações, rescisões ou redefinições de metas de qualidade, com a exigência de manifestação expressa sobre os termos que impactem suas cidades. Hoje, a fiscalização do setor elétrico é atribuição da Aneel, que firma convênios com agências reguladoras estaduais para ampliar o alcance das inspeções. Em São Paulo, essa função é compartilhada com a Arsesp. “Nos últimos tempos, vários foram os exemplos de graves problemas na prestação dos serviços de energia elétrica executados indiretamente em razão de concessões e permissões. Foi de amplo conhecimento o apagão que afetou 15 dos 16 municípios do Amapá em agosto de 2023, além de 20 outros Estados e Distrito Federal, os graves problemas recentemente enfrentados no município de São Paulo, com a ciência e resposta do Governo Federal, os problemas com a distribuidora de energia no Estado do Rio de Janeiro, entre outros diversos exemplos de falhas na prestação dos serviços”, diz a justificativa do projeto. Outro ponto importante da proposta é a previsão de que os municípios possam influenciar a modelagem dos contratos, apresentando condições específicas relacionadas à realidade local, e até se opor à renovação de concessões consideradas insatisfatórias. Em sessão da Câmara, o relator do projeto, deputado Cleber Verde (MDB-MA) defendeu que os municípios “têm melhores condições de avaliar os impactos dos serviços em seus territórios”. Ele ainda citou os apagões de 2023 em São Paulo, de responsabilidade da Enel, e no Amapá para argumentar pela reforma do sistema atual. O projeto avançou no Congresso embalado pela sequência de apagões registrados entre o fim de 2023 e 2024 e acabou aprovado pela Câmara dos Deputados no último trimestre daquele ano. Desde então, a estratégia do prefeito era concentrar esforços no Senado para destravar a votação e transformar a proposta em lei. Com a crise atual, a defesa da caducidade do contrato da distribuidora paulista surgiu como frente principal de atuação de Nunes, que argumenta sobre falhas reiteradas e incapacidade de resposta da Enel em situações críticas. Já na Câmara, apesar das cobranças por intervenção federal na Enel e do discurso duro contra a concessionária, Baleia Rossi não mencionou publicamente, nas entrevistas sobre a crise atual, o projeto de lei que ele próprio apresentou e que segue sem avanço no Senado.