Como o stalking, crime de homem que perseguiu Isis Valverde por 20 anos, marca início da escalada da violência de gênero

Cristiano Rodrigues Kellermann, de 43 anos, se dizia apaixonado pela atriz Isis Valverde. Morador do Rio Grande do Sul, ele contratou um detetive particular para descobrir telefone e endereço da artista e desde janeiro passou a apresentar comportamento invasivo e obsessivo. Nesta quarta-feira, depois de 20 anos de assédio, foi preso por stalking, um crime que consiste em perseguir alguém de forma reiterada, ameaçando a sua integridade física ou psicológica, tanto de forma presencial quanto virtual. De acordo com especialistas, estas atitudes indicam o início de uma escalada de violência que, no limite, pode resultar até em desfechos trágicos, como o feminicídio. Leia também: Em meio a alta de feminicídios, Tarcísio propõe orçamento menor para Secretaria de Mulheres, chefiada por Valéria Bolsonaro Cartazes, mulheres deitadas no chão e pais de meninas: atos contra o feminicídio mobilizam 90 cidades do país A Lei do Stalking, incluída no Código Penal em 2021, tipifica como crime perseguir alguém repetidamente por qualquer meio, com pena de seis meses a dois anos de reclusão, além de multa. Quando o crime é cometido contra uma mulher por motivação de gênero, a pena é dobrada. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, as denúncias de stalking aumentaram 18,2% no país entre 2023 e 2024. Por hora, ao menos dez mulheres enfrentam esse tipo de violência, que registrou 95 mil vítimas no último ano. O crescimento percentual desse crime ficou atrás apenas das tentativas de feminicídio, que tiveram aumento de 19%. De acordo com especialistas, a violência contra a mulher costuma seguir uma escalada: começa com perseguições, ofensas, controle sobre familiares e restrições de circulação; avança para ameaças e agressões; e, quando não interrompida, resulta em lesões corporais cada vez mais graves. Muitas vezes, o desfecho é fatal. — O indivíduo vai dando vários sinais de que pode vir a causar esse feminicídio. Se a Justiça fosse mais efetiva, talvez tivéssemos menos casos — destaca o advogado criminalista Rafael Paiva. Segundo os advogados que atendem a família de Tainara Souza Santos, jovem que foi atropelada e arrastada por um quilômetro em São Paulo, Douglas Alves da Silva já importunava a jovem "há tempos", mas nenhuma denúncia havia sido registrada. Os dois tiveram um breve relacionamento, que havia sido encerrado por ela. Nos casos em que as vítimas conhecem os agressores, como o de Tainara, uma denúncia à polícia permite solicitar medidas protetivas pela Lei Maria da Penha, que não exige relacionamento estável. Já em situações sem qualquer intimidade com o agressor ou quando a vítima não sabe quem é o perseguidor, como no caso de Isis Valverde, o caminho é o Código de Processo Penal, que prevê medidas cautelares como o afastamento. O processo é mais complexo, mas, segundo Paiva, deve mudar em breve. — Estamos prestes a ter uma mudança na legislação que vai prever medidas protetivas, como as da Maria da Penha, para outros crimes dentro do Código de Processo Penal. Hoje não é impossível, mas demanda uma construção jurídica maior — afirma. Ciclo da violência Especialistas apontam que é possível notar sinais de alerta logo no começo da relação, como interesse excessivo na mulher e ciúme mascarado de preocupação. Também é comum que a própria vítima sinta culpa pelo comportamento do agressor e demore Outro comportamento que costuma e culpa por parte da vítima, que demora a perceber o que está acontecendo. — No flerte, já é possível notar o interesse excessivo por essa mulher. Isso evolui para outros sinais de alerta, como contato insistente por meio de ligações e mensagens. Em alguns casos, o agressor aparece no trabalho ou em outros locais que a vítima frequenta, como a academia ou a escola dos filhos — destaca Isabella Santos, psicóloga do Mapa do Acolhimento, organização independente formada por mulheres que busca garantir atendimento psicológico e jurídico voluntário para vítimas de violência. De acordo com a cartilha “Como me Proteger”, do Manual do Acolhimento, há quatro perguntas que podem ser feitas para identificar se uma mulher está sendo vítima de perseguição. Caso identifique uma ou mais dessas situações, fique atenta. "Ele vigia ou controla o que você faz?” “Costuma demonstrar ciúmes com frequência?” “A proíbe ou atrapalha de trabalhar ou estudar?” “Diz que, se você não for dele, não será de mais ninguém, ameaçando-a caso o abandone?” Os impactos da perseguição podem ser observados em diversos âmbitos, segundo a cartilha. Na vida social, a mulher passa a se isolar e deixa de frequentar locais que costumava ir. No campo psicológico, é possível observar angústia, insônia, pesadelos e, em casos mais graves, depressão e síndrome do pânico. Também podem ocorrer abuso de substâncias e atos contra si mesma. Há ainda danos à saúde física, com relatos de dores de cabeça, abdominais, no peito e musculares. Além disso, podem surgir problemas intestinais, como diarreia. Como denunciar De acordo com a lei, perseguir alguém repetidas vezes e por qualquer meio — ameaçando a integridade física ou psicológica, restringindo a capacidade de locomoção ou invadindo e perturbando a liberdade e a privacidade da vítima — é crime. No caso de stalking virtual, a vítima deve apresentar como prova: prints; gravações de tela. Esses materiais precisam demonstrar que o perseguidor invade a privacidade, a intimidade ou interfere no direito de ir e vir da vítima. — Acontece muito perseguição virtual no ambiente do Instagram. Então ela pode tirar prints, fazer gravações de tela. Ela tem que mandar mensagem, atrapalhar a sua vida, sua intimidade, seu direito de ir e vir — afirma Rafael Paiva. Em situações mais graves, quando a perseguição ocorre pessoalmente, as provas recomendadas são: vídeos; fotos; relatos de testemunhas. Nesses casos, é importante evidenciar que o indivíduo persegue a vítima repetidas vezes e tem conhecimento da sua rotina. — Tem que ser algo reiterado. Não basta tirar uma só foto, não seria uma prova substancial para uma condenação. Você prova isso por testemunhas, que têm conhecimento dessa perseguição; por filmagens no local, aquelas câmeras de circuito interno; ou a própria pessoa pode fazer um vídeo e denunciar com base nessas provas — conclui o advogado criminalista. Alta subnotificação Apesar de a lei vigorar há cinco anos e de ter registrado aumento expressivo de denúncias em relação ao ano anterior, o crime ainda sofre com subnotificação — quando o número real de casos não chega às autoridades. Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgada em março, mostra a dimensão da falta de registros: 8,5 milhões de brasileiras disseram ter sido perseguidas nos últimos 12 meses. Segundo o Anuário, a dificuldade começa na necessidade da vítima reconhecer a atitude como crime. Para Isabella Matosinhos, pesquisadora do FBSP, a sociedade ainda está aprendendo a nomear stalking como violência por ter se tornado crime recentemente. Ela explica que, antes, perseguições eram vistas apenas como comportamento inconveniente. Com a tipificação penal, passaram a compor o repertório das forças de segurança, ampliando o debate e estimulando denúncias. Ainda assim, muitas vítimas normalizam essas atitudes e não procuram ajuda. — A subnotificação ainda é alta porque muitas mulheres e homens normalizam esse comportamento. Muitos vivem essa situação, mas não entendem como violência. Ainda que seja esperado esse crescimento por ser um crime recente, a subnotificação também existe — pondera. Os dados mostram ainda que as denúncias não são uniformes pelo país. São Paulo lidera em volume absoluto, com 34.094 registros — mais de um terço das denúncias nacionais. Em estados como Amapá, a taxa foi 3,7 vezes superior à nacional (87,2 casos por 100 mil mulheres), chegando a 319. Roraima registrou número duas vezes maior, com 177,4, e o Distrito Federal, 1,7 vez acima, com 149,5. Segundo a pesquisadora, o destaque para os estados da região Norte pode estar ligado ao forte machismo que, segundo ela, ainda é presente na região, mas também pode refletir uma maior sensibilidade das polícias em registrar essas ocorrências como violência. — Pelo fato de não ser uma violência física, contribui para seguirem mais invisibilizadas. É relativamente recente a ideia de ampliar a ideia de violência contra a mulher para essas formas um pouco mais sutis e menos óbvias — afirma Matosinhos, que também destaca a importância da lei. — Ela traz a definição de que isso, de fato, é uma violência e um crime. Se você é vítima de violência ou conhece alguma mulher nessa situação, procure ajuda. As denúncias podem ser feitas pelo 180, que funciona 24 horas em todo o país. Em casos de risco imediato, acione o 190. *Estagiária sob supervisão de Luã Marinatto.