Consumo de cafeína por grávidas: a exposição precoce realmente provoca alterações metabólicas nos bebês?

Consumo de cafeína por grávidas: a exposição precoce realmente provoca alterações metabólicas nos bebês? Adobe Stock No Brasil, poucas tradições são tão arraigadas quanto começar o dia com um café quente e aromático. Para muitos, a bebida não é apenas um ritual matinal: é companhia constante ao longo do dia, aparecendo em várias xícaras sucessivas ou em outras formas de cafeína. Muitas fontes de cafeína estão presentes em nossa dieta, como café, chá e refrigerantes, além de chocolate, alguns medicamentos e suplementos alimentares. Segundo vários estudos, aproximadamente 90% dos adultos relatam consumo regular de cafeína, com uma ingestão diária média de 227 mg nos EUA; 219 mg na Nova Zelândia; 102 mg na Ásia; uma variação de 23 a 362 mg na Europa; e de 171 a 238 mg no Brasil, sendo o café a fonte mais popular. O consumo moderado de café apresenta benefícios à saúde, como menor risco de doença de Parkinson, doença de Alzheimer e diabetes tipo 2. Além disso, a cafeína possui vários outros efeitos como psicoestimulantes, ações antioxidantes e anti-inflamatórias e propriedades ergogênicas, promovendo maior gasto energético e atividade termogênica. A cafeína aumenta o estado de alerta, o foco e a capacidade de permanecer acordado. No entanto, em excesso, ela tem sido associada a efeitos adversos, como dores de cabeça, náuseas, ansiedade e hipertensão. Ingestão de cafeína por grávidas e lactantes A presença tão disseminada dessa substância, e seus conhecidos efeitos no cérebro e no metabolismo, ajuda a explicar por que ela também desperta dúvidas, especialmente entre mulheres grávidas ou em fase de amamentação. Embora profissionais de saúde recomendem moderação no consumo durante a gestação, o hábito de ingerir cafeína persiste para grande parte das mulheres. E é justamente nesse ponto que a ciência lança seu olhar: quais são as consequências dessa exposição precoce para o desenvolvimento do bebê? Nós pesquisadores do Laboratório de Fisiologia Endócrina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) temos uma linha de pesquisa experimental sobre o impacto direto e indireto da cafeína em fetos e recém-nascidos. Nos últimos dois anos, publicamos alguns artigos científicos sobre essa correlação. O que a ciência já sabe Em 2024, publicamos um artigo de revisão de literatura, no qual analisamos cerca de 120 estudos que investigaram em modelos experimentais com roedores as ações da cafeína em fetos e recém-nascidos e as correlações com saúde e doença. De fato, evidências epidemiológicas e experimentais revelam o impacto da exposição precoce à cafeína. Vale esclarecer que a semelhança do metabolismo da cafeína entre humanos e roedores permite compreender os mecanismos moleculares afetados pela exposição pré-natal à cafeína. A ingestão materna de cafeína afeta o peso corporal e o sistema endócrino da prole ao nascimento e exerce efeitos de longo prazo sobre o sistema endócrino, a função hepática, o metabolismo da glicose e dos lipídeos, o sistema cardíaco, o sistema reprodutivo e o comportamento. Curiosamente, alguns desses efeitos dependem do sexo. Assim, a dose de cafeína considerada segura para mulheres grávidas pode não ser adequada para o período pré-natal. Após a ingestão, a cafeína é rapidamente absorvida no trato gastrointestinal, frequentemente atingindo o pico de concentração plasmática em menos de uma hora. A cafeína distribui-se amplamente pelo corpo, atravessando membranas biológicas, a barreira hematoencefálica e outras barreiras, como a placentária e a da glândula mamária. A meia-vida da cafeína aumenta de 2–4,5 horas em mulheres não grávidas para 11,5–18 horas em gestantes no final da gravidez. Isso pode implicar um aumento na cafeína sérica de 2,35 μg/ml no início da gestação para 4,12 μg/ml no terceiro trimestre, mesmo sem grande alteração na ingestão diária de cafeína. Esse aumento na concentração materna, aliado à capacidade da cafeína de atravessar a placenta, promove superexposição fetal. Além disso, a placenta e o feto não metabolizam a cafeína, resultando em uma meia-vida fetal de aproximadamente 50–100 horas. Assim, os níveis de cafeína no sangue do cordão umbilical podem ser maiores do que os da mãe. Portanto, durante a gestação, o aumento da meia-vida da cafeína promove superexposição fetal. Além do efeito direto, a ingestão de cafeína induz mudanças maternas, como aumento de hormônios e lipídeos. Cafeína e desfechos gestacionais Apesar dos conhecidos efeitos metabólicos e ergogênicos da cafeína, seu papel no peso corporal materno durante o período pré-natal permanece controverso. A ingestão materna de cafeína durante a gestação tem sido associada a um risco aumentado de aborto e natimortalidade, mas não de parto prematuro. O consumo elevado de cafeína pode ter efeitos prejudiciais sobre o sucesso gestacional e a saúde da prole. Em roedores, a exposição à cafeína durante a gestação pode prejudicar a implantação embrionária e comprometer o crescimento e desenvolvimento fetais, levando à perda gestacional e ao baixo peso ao nascer. Em humanos, vimos que o efeito teratogênico da cafeína não é claro; mas, o consumo excessivo no início da gestação está associado a maior risco de aborto espontâneo. Uma ingestão materna superior a 300 mg/dia, equivalente a 3 a 4 xícaras, pode aumentar o risco de aborto em 31%. Mesmo em roedores, a cafeína é considerada um agente teratogênico fraco, sendo necessária uma dose alta para induzir malformações em um pequeno número de animais. No entanto, vimos que o consumo materno excessivo é capaz de prejudicar a implantação embrionária e o desenvolvimento fetal, interrompendo a gestação em roedores. Cafeína sobre hormônios tireodianos Em outro artigo publicado neste ano por nosso grupo estudamos os efeitos da cafeína nos hormônios tireoidianos. A hipótese do nosso estudo era que a cafeína na gestação e na lactação provoca sim alterações na síntese e no metabolismo dos hormônios tireoidianos. Realizado com animais de experimentação, aprovado pelo Comitê de Ética, verificamos que estávamos certos. Em nossos resultados, conseguimos caracterizar alguns mecanismos adaptativos que podem contribuir para a disfunção tireoidiana em mães e seus filhotes expostos a baixas doses de cafeína. As alterações nos níveis de hormônios tireoidianos envolvem modificações na síntese desses hormônios, afetando o eixo hipotálamo–hipófise–tireoide, especialmente em mães e fêmeas adultas, além de uma leve alteração na morfologia da tireoide e na expressão de mRNA de proteínas tireoidianas-chave. Nós não descartamos alterações na atividade dessas proteínas, que são responsáveis pelas importantes mudanças nos níveis dos hormônios tireoidianos. Portanto, a ingestão materna de cafeína, mesmo em baixas doses, pode impactar a função tireoidiana das mães e de sua prole ao longo da vida. Alterações dependem de gravidez ou lactação, sexo e idade Em outro estudo do nosso grupo verificamos que a exposição precoce à cafeína provoca alterações metabólicas e hormonais de maneira diferente conforme a janela de exposição, se durante a gestação ou lactação, o sexo e a idade. Os experimentos foram realizados em um modelo de rato, também aprovado pelo Comitê de Ética, e mostraram que a exposição à cafeína durante a lactação aumenta o risco de desenvolvimento de obesidade entre filhotes do sexo feminino. Para as crias do sexo masculino, a gestação parece ser um período mais crítico de exposição à cafeína. A ingestão materna de cafeína durante a gestação ou lactação pode afetar de forma distinta o metabolismo e a função tireoidiana da prole. Apesar da redução do hormônio tireoideano T3 no desmame, essas alterações não são observadas na vida adulta. Outros hormônios, como insulina, leptina e corticosterona, não são afetados. A exposição apenas durante a lactação promoveu intolerância à glicose e maior suscetibilidade à obesidade em resposta à frutose nas crias fêmeas. Por outro lado, a exposição da prole de machos à cafeína somente durante a gestação promoveu maior preferência por uma dieta palatável e aumentou a suscetibilidade à obesidade. Esses resultados sugerem que os efeitos da cafeína sobre a saúde da prole dependem da janela de exposição e do sexo da cria. Portanto, para as fêmeas, o período de lactação parece ser uma janela de desenvolvimento mais crítica para os efeitos precoces da cafeína. Nossos estudos só foram viabilizados pelo apoio de agências brasileiras de fomento como Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes), que também apoiou a publicação deste artigo. Patrícia Cristina Lisboa recebe financiamento da Faperj, Capes e CNPq. Egberto Gaspar Moura recebe financiamento da FAPERJ e CNPq Luana Lopes de Souza recebe financiamento da FAPERJ, CAPES e CNPq.