Entenda quem pode responder na Justiça por música com apologia ao estupro que foi pivô de confusão em festa de formatura

A formatura de alunos do 3º ano do ensino médio do Colégio Madre de Deus, em Olinda (PE), tinha tudo para ser um momento especial para pais e filhos. No entanto, virou um pesadelo após o DJ contratado para a festa tocar um funk que faz apologia explícita ao feminicídio. A música "Helicóptero" possui teor sexual e violento e já havia sido tocada pelo menos duas vezes no evento antes de o pai de um dos alunos subir ao palco e interromper a apresentação do DJ responsável pela seleção. Advogados criminalistas ouvidos pelo GLOBO afirmam que músicos e "demais agentes" podem, em tese, responder civilmente se participarem da cadeia de exploração e divulgação (financiamento, marketing, distribuição) de canções que façam apologia ao crime; e também podem ser responsabilizados penalmente, se houver elementos de participação e dolo (intenção). Artistas reagem com críticas: confusão em formatura após funk com alusão a estupro gera reação de artistas e alerta sobre violência de gênero Marlboro critica DJ que tocou música com alusão a estupro em Recife: 'Desejamos ser inesquecíveis pelas boas ações' Lançada em 2019 por DJ Guuga e MC Pierre, a música da polêmica descreve uma situação na qual dois homens estão em um helicóptero e exigem que uma passageira faça sexo com eles sob ameaça de ser jogada da aeronave caso se recuse. A faixa já acumula 66 milhões de reproduções no Spotify e mais de 51 milhões de visualizações no YouTube, onde é exibido um alerta de “letra explícita”. Em vídeos que viralizaram nas redes sociais, a mãe de um aluno que estava na festa se revoltou com o funk tocado pelo DJ. “Vocês são crianças. Você acha isso certo? Se não der a ‘x…’, vai jogar a menina lá de cima?”, questiona. A apologia a crime, acusação levantada pelos pais na festa de formatura, está tipificada no Código Penal no artigo 287, segundo o qual, para que uma letra de música seja tecnicamente enquadrada como apologia ao feminicídio, é necessária a manifestação pública (como em shows) e um teor que exalte, elogie ou justifique o crime. Segundo Tatiana Naumann, advogada especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher, a canção apresenta elementos fortes nesse sentido, embora o enquadramento não seja automático: — A letra não se limita a narrar uma situação fictícia ou descrever um fato violento de forma neutra. Ao contrário, ela constrói um discurso em que a violência é funcional, instrumental e legitimada: há ameaça explícita de morte e coação direta para obtenção de ato sexual, a reprodução de um roteiro típico de violência sexual associada à possibilidade de homicídio (“ou dá ou morre”). E, ao final, a celebração do resultado, com agradecimento pela submissão sexual da vítima. Naumann também cita o crime de incitação à violência, descrito no artigo 286. — Essa letra pode ser considerada tanto como apologia quanto incitação a violência. Se a narrativa vai além da mera normalização e passa a sugerir, incentivar ou legitimar a prática da violência como comportamento possível ou eficaz, pode-se falar também em incitação ao crime, mesmo que não haja um comando explícito. O advogado especialista em Propriedade Intelectual, Fernando Canutto, explica quem, em termos legais, poderia ser responsabilizado nestes casos. — Tanto no âmbito civil ou penal, o artista é sempre o primeiro polo natural de responsabilização porque é quem cria e/ou veicula a mensagem. Produtores, gravadoras/selos e demais agentes econômicos também podem responder civilmente se participarem da cadeia de exploração e divulgação, como, por exemplo: financiamento, marketing, distribuição e houver nexo com o dano. Penalmente, só se houver elementos de participação e dolo, mas não é automático. Canutto também mencionou que plataformas que abrigam esses conteúdos também podem moderar e remover o conteúdo por iniciativa própria, sem depender de ordem judicial, quando violar lei ou termos de uso. — Após o julgamento do STF que redesenhou o regime do art. 19 do Marco Civil, ampliou-se a possibilidade de responsabilização civil das plataformas em hipóteses de conteúdo ilícito, com um modelo que tende a exigir respostas mais diligentes incluindo lógica de “notificação e retirada” em várias situações, com recortes e deveres específicos — relembrou. Em 2018, a música “Só surubinha de leve” do MC Diguinho que sugeria que mulheres fossem alcoolizadas, violentadas e abandonadas na rua, levou a plataforma Spotify a retirar a faixa momentaneamente do ar após acusações de apologia ao estupro. Apologia ao crime ou liberdade de expressão artística? Esses casos esbarram numa discussão ainda considerada tênue no Judiciário brasileiro: é apologia ao crime ou liberdade artística? Para Tatiana Naumann, embora a Justiça se mostre fortemente preparada para lidar com situações de apologia e incitação à violência contra a mulher, ela ainda é limitada e fragmentado na prática. — A principal dificuldade reside na delimitação do limite entre liberdade de expressão artística e discurso penalmente relevante, uma vez que os conceitos de apologia e incitação possuem elevado grau de abstração e dependem fortemente da interpretação judicial — diz a advogada — Isso gera insegurança jurídica e decisões inconsistentes, muitas vezes marcadas por resistência em responsabilizar conteúdos musicais ou midiáticos sob o argumento de proteção da liberdade artística, mesmo quando há evidente normalização ou legitimação da violência. Ainda de acordo com Fernando Canutto, em ações coletivas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reforçado que não basta "reprovação e viralização" das músicas, é preciso também demonstrar lesão coletiva relevante com critérios mais rigorosos. O advogado informa que a análise do Judiciário, nesses casos, não costuma ficar preso a um único critério e pode ponderar sobre: o conteúdo objetivo da mensagem, contexto de divulgação, risco de estímulo e normalização de violência e também o tipo de tutela pedida, como remoção pontual, bloqueio de perfil, retratação, reparação individual ou coletiva. Nauman reitera que há necessidade de interpretações mais sensíveis à perspectiva de gênero e de políticas públicas complementares que enfrentam a violência simbólica e cultural contra a mulher. (*Estagiárias sob supervisão de Daniela Dariano)