Sabão, renda e água limpa: como Mangueira transformou óleo usado em qualidade de vida

Na Mangueira, na Zona Norte, um resíduo comum da rotina doméstica passou a ganhar novo destino e novo sentido. O óleo de cozinha usado, que antes corria risco de ser descartado de forma inadequada, hoje é coletado, tratado e transformado em sabão e detergente ecológicos dentro da própria comunidade. A mudança acontece na ecofábrica comunitária Omìayê, implantada em maio de 2025 pelo Instituto Singular Ideias Inovadoras, e já apresenta impactos concretos no meio ambiente, na geração de renda e na vida de moradores da favela. Projetos sociais: Natal Solidário em Niterói mobiliza comunidade com ações para famílias e crianças Família toda de mudança: menino do Complexo do Alemão vence disputa com mais de três mil bailarinos e entra para a Escola Bolshoi O nome Omìayê resume o conceito do projeto. A palavra une termos do iorubá, língua africana com forte influência na cultura brasileira: omì significa água, e ayê, terra, simbolizando a conexão entre esses dois elementos. A partir dessa ideia, o projeto articula saneamento ecológico circular, educação ambiental e protagonismo comunitário como resposta a desafios estruturais do território, com base em tecnologia social, capacitação local e monitoramento científico. A proposta funciona como um ciclo que começa e termina dentro da Mangueira. O óleo usado, doado pelos próprios moradores, é reaproveitado na ecofábrica e retorna às casas na forma de produtos de limpeza distribuídos gratuitamente. Toda a produção é realizada por mulheres da comunidade, responsáveis pelo reaproveitamento do resíduo e pela fabricação dos produtos. Ao todo, a iniciativa já gerou dez empregos diretos no território. Barras do ecossabão Omì, produzido a partir do óleo de cozinha doado por moradores da Mangueira e reaproveitado Divulgação/Instituto Singular Ideias Inovadoras Desde o início da operação, os resultados ajudam a dimensionar o impacto ambiental da iniciativa. Até 15 de dezembro de 2025, a Omìayê também produziu 75 mil litros de microrganismos, capazes de tratar até 150 milhões de litros de esgoto. No mesmo período, foram coletados 3.200 litros de óleo de cozinha usado, evitando a poluição de mais de 80 milhões de litros de água. A produção acumulada chega a cerca de três toneladas de sabão ecológico Omì — com potencial para tratar até 500 mil litros de esgoto — e 500 litros de detergente, que já contribuíram para o tratamento de aproximadamente 50 mil litros de esgoto. Para quem trabalha na Omìayê, o projeto se constrói no cotidiano. Auxiliar de laboratório, Mariana Lousada conta que conheceu a iniciativa por meio de familiares e se sentiu motivada pelo impacto direto na comunidade. — Antes de conhecer todo esse processo, o óleo era despejado em ralos ou até mesmo em vasos sanitários. Hoje ele passou a significar muito. Eu vejo a diferença que esse projeto fez dentro da nossa comunidade e recebo muitos elogios — relata Mariana. — Minha rotina é tranquila e divertida. Aprendi diversas coisas, principalmente a alimentar as bactérias e a cuidar delas para ajudar no esgoto da comunidade. Câncer: Humaitá ganha centro de tratamento anexo à Casa de Saúde São José Trajetória semelhante é a de Dani Lucas, que antes trabalhava como manicure e hoje atua como auxiliar de produção. Ela conta que conheceu o Omìayê por meio do projeto Meninas e Mulheres do Morro, desenvolvido na Mangueira, e se sentiu motivada pela oportunidade de aprender uma nova atividade. Mariana Lousada, auxiliar de laboratório da ecofábrica Omìayê Divulgação/Instituto Singular Ideias Inovadoras — Antes, o óleo era algo que podia ser jogado no esgoto. Hoje a comunidade já sabe que existe uma ecofábrica onde pode entregar esse óleo para ser reaproveitado — afirma Dani. — Minha rotina na ecofábrica é maravilhosa. Eu aprendi e continuo aprendendo muito. Amo o que faço. Os produtos fabricados na Omìayê são distribuídos gratuitamente para cerca de 1.500 famílias da Mangueira. Para quem participa da produção, esse retorno direto tem peso simbólico e prático. — Sinto satisfação, orgulho e gratidão ao saber que os produtos chegam às casas de outras famílias. É gratificante perceber que algo feito com cuidado pode aliviar despesas, ajudar no dia a dia e fortalecer laços de solidariedade — diz Mariana. O funcionamento da ecofábrica envolve etapas de peneiração, filtragem e mistura do óleo com microrganismos em caldeiras especiais, seguindo uma formulação fixa. O diferencial está na tecnologia ambiental incorporada ao processo, desenvolvida em parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF). Dani Lucas com barra do ecossabão Omì pronta Divulgação/Instituto Singular Ideias Inovadoras A base científica do projeto é a biorremediação, técnica que utiliza microrganismos inofensivos à saúde humana para tratar o esgoto de forma natural, ajudando a degradar a matéria orgânica. Esses microrganismos continuam atuando mesmo após o uso do sabão e do detergente, reduzindo a carga poluente de forma contínua. A parceria com a universidade garante acompanhamento técnico e validação científica dos resultados, consolidando a Omìayê como uma tecnologia social estruturada e com potencial de replicação. Segundo Gabriel dos Santos Pizoeiro, diretor do Instituto Singular, a Omìayê nasceu da necessidade de tornar o saneamento um tema concreto no cotidiano da favela. Prótese pronta no mesmo dia: clínica universitária aposta em odontologia digital para agilizar tratamentos — Falar de saneamento em favela muitas vezes vira uma conversa abstrata. Todo mundo sabe que é grave, mas a solução parece distante. A gente desenhou uma resposta que cabe no dia a dia, com um diferencial técnico real: a biorremediação por micro-organismos vivos microencapsulados dentro do sabão — explica. Com participação comunitária, projeto mira expansão e política pública Gabriel dos Santos Pizoeiro explica que, “em termos simples”, o ecossabão Omì não é só um produto de limpeza. — Ele é um veículo de micro-organismos que, durante o uso, chegam ao fluxo do esgoto e ajudam a degradar matéria orgânica — ensina. Escolas de samba, saber e saúde: Mangueira inaugura polo universitário, e Salgueiro ganha clínica médica gratuita A escolha da Mangueira levou em conta o déficit sanitário e a força da organização comunitária. — A Mangueira reúne esses dois elementos e conta com a parceria da Associação Meninas e Mulheres do Morro, uma ONG que atua no território há mais de 30 anos. Essa relação construída foi essencial para dar o passo seguinte com consistência — afirma Pizoeiro. Desde o início, a comunidade participa de toda a cadeia, da coleta do óleo ao uso final do produto. — A lógica do Omìayê depende de rotina, confiança e escala. O ciclo se fecha quando o produto volta para as famílias. O uso doméstico é o momento de aplicação da biorremediação — explica. 'Parem de distribuir quentinha na rua': Vereadora do Rio causa polêmica ao defender que ajuda a população de rua aumenta criminalidade Além da dimensão ambiental, o projeto tem impacto direto na vida das mulheres que atuam na ecofábrica, como avalia Mariana Lousada: — Trabalhar em um projeto que gera renda e cuida do meio ambiente significa unir sobrevivência, consciência e transformação social. Fortalece a economia local, promove autonomia e cria senso de pertencimento. Dani Lucas afirma que o projeto representa oportunidade, dignidade e reconhecimento. — Aqui a gente não está só trabalhando, está sendo vista, valorizada e tendo a chance de construir autonomia e sonhar com um futuro melhor — diz. A mudança de percepção já é sentida no cotidiano da Mangueira. — As pessoas param na rua para elogiar, principalmente o tratamento do esgoto e a redução do odor e dos entupimentos — relata Mariana. ‘Famílias inteiras sem rumo’: Restaurante tradicional é fechado em Barra de Guaratiba em ação do Exército e moradores de outras casas são notificados Para o Instituto Singular, a experiência da Omìayê aponta caminhos para o futuro. O objetivo é ampliar a atuação dentro da própria Mangueira, chegar a outros locais. — Nosso futuro ideal é conseguir expandir nossa atuação, adentrar novas comunidades e transformar o projeto em uma política pública. Precisamos chegar onde o saneamento tradicional não chega. Para isso, novas parcerias, com entes públicos e privados, são fundamentais — afirma Pizoeiro. — A favela deixa de ser apenas afetada pelo problema e passa a ser parte da resposta, com método, técnica e governança comunitária. Atualmente, a maior parte dos recursos do Instituto Singular vem de parcerias com entes públicos, por meio de chamamentos, editais e licitações. A ecofábrica Omìayê, no entanto, opera exclusivamente com recursos privados e ainda não conta com parcerias públicas diretas voltadas ao funcionamento do projeto. Initial plugin text