'No palco, entro num personagem': Francis Hime abre projeto Terças no Ipanema em janeiro

Quando Francis Hime subir ao palco do Teatro Municipal Ipanema Rubens Corrêa, no dia 6 de janeiro, para abrir a temporada 2026 do projeto Terças no Ipanema, o gesto carregará mais do que a simples retomada de uma agenda de shows. É um reencontro com um espaço que faz parte da história da criação artística da cidade. Para Francis, que não se apresenta ali há mais de 30 anos, o retorno carrega memórias e a leveza de quem segue criando. Mais de 700 jogos de tabuleiro: Luderia abre as portas no Catete Museu de Favela: Saiba o que se encontra no centro cultural que reúne histórias de nove comunidades — É uma alegria voltar àquele palco. Eu fiz show ali com a Turma do Funil, em 1978. Foi divertidíssimo. A gente bebia muito, alguns mais, outros menos. A direção era do Benjamin Santos, que hoje está no Piauí. Na noite de estreia, tivemos a presença dos pais da família Buarque, Sérgio e Maria Amélia — recorda o compositor, cantor, pianista e maestro, citando o grupo que contava com amigos como Chico Buarque e Miúcha. O palco do Ipanema ficou na lembrança como lugar de encontros intensos, mas também como símbolo de uma época em que a música ocupava o teatro. — Depois disso, eu assisti a muitas peças, mas me apresentar ali, nunca mais. Voltar agora, depois de tanto tempo, dá uma expectativa diferente — diz ele, que mora no Jardim Botânico. Francis Hime. O pianista, cantor, compositor e arranjador em sua casa no Jardim Botânico: temporada de shows em Ipanema Guito Moreto A temporada começa com quatro apresentações, sempre às terças-feiras, em formato intimista, com convidados semanais e um roteiro baseado no show “Não navego pra chegar”, que dá nome ao álbum mais recente de Francis, lançado pela Biscoito Fino. A direção é de Olivia Hime, há quase seis décadas sua parceira mais constante, musical e afetiva. — É uma delícia trabalhar com ela. Ela brinca dizendo que a gente se mata, mas que está tudo bem. Eu faço uma música e corro para mostrar para ela. Olivia faz letra para as minhas músicas. É uma ótima parceira — elogia. O repertório atravessa diferentes fases da carreira e inclui canções novas e antigas, sem hierarquia entre elas. — Cada convidado canta cinco músicas, e o resto do show segue mais ou menos o roteiro que eu apresentei no Vivo Rio, que teve mais cantores. Foi uma delícia. Agora é uma versão pocket. Entre as novidades aparecem composições recentes como “Samba pra Martinho” e “Não navego pra chegar”, além de parcerias que marcaram a música brasileira — adianta, citando o espetáculo que fez em maio na casa de shows no Parque do Flamengo. Projeto: Lagoa pode ganhar centro de apoio à fauna silvestre para atendimentos de emergência O título do show, escolhido por Olivia, sintetiza bem a forma como Francis encara sua trajetória. Olhar para trás não significa revisitar o passado como memória estática. No palco, as canções ganham outro tempo. — O caminho é que é importante. Eu sinto que já encontrei esse porto, com tantas músicas feitas. Mas o processo de criação é sempre uma descoberta. Minhas músicas não voltam como lembrança. Eu as sinto de uma forma nova, como se tivesse composto alguns dias antes. Se fosse só memória, talvez eu nem tocasse — avalia. ‘Meu processo criativo é anárquico’, afirma Francis Hime em sua casa no Jardim Botânico Guito Moreto Essa relação viva com a própria obra nasce do modo como Francis cria. O processo acontece dentro de casa, no Jardim Botânico, bairro onde mora desde 1997. Cercada de árvores, a casa abriga o estúdio onde ele compõe, toca e organiza partituras — espaço que reflete tanto a disciplina quanto o caráter livre de sua criação. — Meu processo criativo é anárquico. Às vezes, o lugar onde eu mais gosto de compor é na rede. Agora estou sem rede porque o estúdio está bagunçado, tenho muitos papéis — conta. Em recuperação de uma queda recente, na qual quebrou o fêmur direito e o braço, Francis tem aproveitado o período de convalescença para reorganizar o espaço de trabalho, tarefa que ainda deve levar algumas semanas. Só depois disso, diz, pretende retomar a tarefa de compor com mais intensidade. — Caí do nada. Devo ter prendido o sapato no tapete. Quebrei o fêmur direito e o braço. Foi um desastre total — relata. Mesmo assim, os planos seguem ativos. Entre eles, a ideia de escrever novos concertos, projeto que atravessa os últimos anos de sua vida criativa: — Há alguns anos fiz uma lista de concertos que queria fazer. Eram 15. Já escrevi seis. Estou devendo. A reorganização do estúdio acabou se tornando também um gesto simbólico de continuidade. Aos 86 anos, Francis não cogita desacelerar. — Para mim, trabalhar é fundamental. Se eu não trabalho, fico macambúzio, triste. Nada me dá mais alegria do que compor, mas também gosto de fazer arranjos e dos shows — afirma. Parceira. Francis com Olivia, que participará dos shows em Ipanema Divulgação/Nana Moraes Família toda de mudança: menino do Complexo do Alemão vence disputa com mais de três mil bailarinos e entra para a Escola Bolshoi A criação, para Francis, tem mais de transpiração do que de inspiração, como ele mesmo brinca. O ato de compor, explica, nasce do contato direto com a palavra e com o instrumento. Ele conta que aprecia musicar poemas. — Pego um poema e fico vendo que gênero ele pede, uma canção, um samba, um baião. Às vezes me engano e parto para outra abordagem, mas geralmente começo tentando encontrar uma melodia para a primeira frase e vou desenvolvendo a partir daí. A Zélia (Duncan) me deu um poema lindo, e fico vendo de qual gênero seria. O Ruy Guerra brinca que se deixar eu musico até bula de remédio — diz. Com o tempo, ele afirma ter adquirido uma facilidade especial para esse diálogo entre palavra e música: — Gosto de fazer a música correr atrás da letra, não o contrário, quando parece que a música está correndo atrás da letra. O piano, presente desde a infância, é o grande companheiro desse processo. — Estou fazendo 80 anos de piano — celebra, com orgulho. O instrumento foi um presente do avô, pianista amador que chegou a tocar no Theatro Municipal. Aos 6 anos, Francis começou a estudar formalmente, mesmo sem muito entusiasmo. Enquanto a mãe estava em outro cômodo da casa, ele cantava baixinho músicas de carnaval para passar o tempo. — Eu não gostava de estudar, achava entediante. Mas gostava de dedilhar, brincar. Ali começou a surgir a brincadeira com o piano. Foi a semente do compositor — recorda. A primeira parceria veio com Vinicius de Moraes, e a primeira música (“Sem mais adeus”) já nasceu, segundo ele, “bem construída”. Depois vieram Ruy Guerra, Paulinho Pinheiro, Chico Buarque e tantos outros. Ao longo da vida, Francis trabalhou com mais de 60 ou 70 parceiros. E segue aberto a novas colaborações, sem distinção de geração ou estilo. — Quando é um parceiro novo, você não sabe se vai dar certo. Mas sempre deu — afirma. No palco, ele se transforma. Houve um tempo em que tinha medo de se apresentar. — Eu precisava encher a cara para subir no palco — admite. Até que, certa noite em Belém do Pará, minutos antes de um show de piano e voz com o teatro lotado, passou mal do estômago. Não houve alternativa: fez o espetáculo sem beber. Desde então, nunca mais bebe antes das apresentações, somente depois, quando gosta de apreciar um bom vinho. — Pensei: “O que vai ser de mim?”. E foi incrível. No palco, eu entro num personagem. Fico muito mais solto e eloquente do que na vida cotidiana — destaca. Mesmo após a cirurgia no fêmur, Francis não deixou de se apresentar. Recentemente, participou de um concerto em São Paulo ao lado de quatro pianistas tocando seus arranjos. — Toquei umas três músicas. O pessoal aplaudiu de pé quando me viu entrando com o andador. Foi muito emocionante — alegra-se. Inspiração entre árvores, como em uma floresta A recuperação do acidente segue com fisioterapia e hidroginástica. —Já estou andando. Estou progredindo bem. Acho que vou conseguir subir ao palco de Ipanema sem andador, mas está tudo bem se eu precisar dele —garante. A escolha dos convidados para a temporada reflete a diversidade de sua obra. Ana Costa, por exemplo, nunca havia trabalhado com Francis antes. Já Olivia Hime e Zélia Duncan participaram do disco que dá nome ao show. — Cada um tem uma ligação diferente comigo. Alguns são relações antigas, outros mais recentes. É bom que seja assim. Minha música é muito variada — afirma. Entre um ensaio e outro, Francis segue atento ao mundo e à cidade. Já viveu fora do Brasil, passou temporadas na Suíça e em Los Angeles, mas nunca deixou o Rio por completo. Francis Hime encontra inspiração na natureza que cerca sua casa Divulgação — Essa cidade é muito bonita. Mesmo com a violência, com a incerteza. Parece um fim dos tempos, mas eu gosto muito do Rio — diz. No Jardim Botânico, ele encontra o silêncio necessário para caminhar entre as árvores, observar o entorno e seguir compondo. — Antes de construir esta casa (na Rua Engenheiro Alfredo Duarte), já vivia no bairro. Morei na Rua Baronesa de Poconé e na Engenheiro Pena Chaves. Achava que não teria grana para construir, mas vendi parte do terreno e fiz um financiamento. O projeto é do Sérgio Rodrigues, o único dele no Rio. A casa é toda de madeira e no meio das árvores, é como se estívéssemos no meio da floresta. Acordo e fico olhando as árvores, me dá inspiração. É muito silencioso, adoro. Só temos que tomar cuidado com os macacos. Eles entram em casa e assaltam a geladeira, não respeitam nada (risos) — diz. Initial plugin text