Quando Seymour Hersh revelou o massacre cometido, em 1968, por soldados americanos em My Lai contra civis vietnamitas, inclusive bebês, o jornalista foi acusado de atentar contra o interesse nacional. Penou para publicar a reportagem. Os horrores lhe renderam muitas noites sem dormir e um Pulitzer. Em 2004, denunciou torturas e abusos sofridos por prisioneiros em Abu Ghraib após a invasão do Iraque pelos Estados Unidos. As Forças Armadas chiaram novamente. De seus pares, recebeu o epíteto de “aquele que faz o poder tremer”. Teimosamente na ativa aos 88 anos, ele é a razão de ser de “Seymour Hersh: em busca da verdade”, documentário de Laura Poitras e Mark Obenhaus, pré-indicado ao Oscar e disponível a partir de sexta-feira na Netflix. US$ 42 milhões: Empresa terceirizada pelo Exército dos EUA é condenada por tortura de iraquianos na prisão de Abu Ghraib 'Não podemos deixar a história se repetir': Bernie Sanders compara ataques contra o Irã com invasão ao Iraque Lá se vão duas décadas desde que Poitras, após devorar os textos de Hersh na New Yorker sobre a Guerra ao Terror do governo George W. Bush, quis cooptá-lo para o filme. Perfilá-lo, defendia, seria ideal para escancarar o ciclo de abuso de poder em Washington desde os anos 1960. À época, o jornalista justificou sua negativa com a necessidade de proteger suas fontes. Há três anos, a morte de informantes, a insistência de Poitras e os filmes por ela dirigidos no período garantiram sua bênção ao projeto. “Em busca da verdade” foi finalizado com Donald Trump de volta à Casa Branca, quando a reflexão sobre o precário estado da democracia americana, a propagação de fake news e o cerco de Washington a uma imprensa em crise está na pauta do dia. — Hoje são mais nítidas as consequências da impunidade dos crimes cometidos pelos governantes. Desgraçadamente, a escala do que eu queria mostrar aumentou. Por outro lado, o posicionamento do filme se fortaleceu — afirmou a diretora ao GLOBO, por videochamada. Soldados americanos no Vietnã, no fim dos anos 1960 Divulgação/Netflix Quando abordou Hersh em 2005, Poitras, então com 41 anos, acabara de dirigir seu primeiro longa, “My country, my country”, passado no Iraque ocupado. Uma década depois receberia o Oscar por “Cidadãoquatro”, a partir das revelações de Edward Snowden sobre programas secretos de vigilância da Agência de Segurança Nacional dos EUA. Depois mergulhou no WikiLeaks e em Julian Assange para seu “Risk”. E no ano passado recebeu o Leão de Ouro em Veneza por “Toda beleza e carnificina”, sobre o ativismo político da fotógrafa americana Nan Goldin. Hersh viu os filmes. E tomou nota dos riscos envolvidos no trabalho de uma das fundadoras da plataforma Intercept, da qual depois se desligaria. — A obra do Sy [como é conhecido pelos amigos] é tão impressionante que não cogito me colocar no patamar dele. Identifico, sim, paralelos, no interesse por narrativas não-oficiais, no questionamento dos limites do poder. E sei que o respeito mútuo pesou para ele finalmente me dizer “sim” — afirmou Poitras. “Em busca da verdade” persegue a trajetória de Hersh com o objetivo de reforçar a importância, para a saúde das democracias, de se detectar e enfrentar o câncer da impunidade. Ao GLOBO, Poitras comparou como as instituições, nas duas maiores democracias das Américas, têm lidado com a doença. Classificou como “bom sinal” o julgamento e a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro, que, até o momento, “arca com as consequências de seus atos”: — Isso jamais aconteceu nos EUA, e não só com Trump. [O vice-presidente] Dick Cheney normalizou a tortura e não morreu na prisão. [O presidente] Richard Nixon renunciou e foi perdoado. Por outro lado, o assassinato de mais de uma centena de pessoas na operação policial no Rio mês passado atesta que ações de acobertamento ainda alimentam o ciclo de impunidade aí. Vice-presidente dos EUA, Dick Cheney Saul LOEB / AFP Nos EUA, não foram poucos os críticos que, ao elogiarem “Em busca da verdade”, questionaram se os feitos de Hersh seriam possíveis hoje, em um cenário de mídia fragmentado e com o ciclo ininterrupto de notícias. Poitras crê que documentaristas vêm suprindo lacunas deixadas pelo jornalismo profissional. — Destaco o trabalho de Petra Costa, que, com “Democracia em vertigem” e “Apocalipse nos trópicos” [também pré-indicado ao Oscar] trata do tema com maestria, a partir da realidade brasileira. Ela é genial — disse ao GLOBO. Um dos trunfos de “Em busca da verdade” é o uso cirúrgico das imagens de arquivo. Hersh ofereceu, pela primeira vez, e com enorme relutância, acesso ilimitado a seu robusto e caótico baú, das notas do fim dos anos 1960 às conversas com fontes de Gaza nos últimos dois anos. Imagens, rascunhos, documentos e áudios do Vietnã, da queda de Nixon, do golpe no Chile, e de investigações pela CIA ilustram a enormidade do trabalho. Prisioneiro em Abu Ghraib preso por aramado em cima de uma caixa Governo dos EUA Hersh conta no filme como ter deixado seu número de telefone em entrevista a uma rádio o levou à fonte que lhe forneceu as imagens de Abu Ghraib. A maneira como a mulher encontrou as fotos é outra pequena joia do documentário. O filme também apresenta novas informações sobre a saída do repórter do New York Times, em 1979, quando investigava o crescente poder das corporações e teria esbarrado em interesses não só dos donos do jornal, mas do comando do jornalismo. Após passar pela New Yorker e colaborar com a London Review of Books, ele hoje publica no Substack, na página “É pior do que você pensa”, com mais de 200 mil assinantes. Então ditador da Síria, Bashar al-Assad, ao lado da primeira-dama, Asma al-Assad, vota em referendo constitucional em 2012 SANA/AFP Um dos momentos mais saborosos do documentário se dá na reprodução da conversa de Nixon com seu secretário de Estado, Henry Kissinger, quando classificam Hersh de “aquele filho da puta, que sempre está certo”. Mas o filme prova que não era sempre o caso. O repórter também errou. Em um dos equívocos mais célebres, Hersh reconhece ter questionado a denúncia de opositores do regime de Bashar al-Assad de que ele ordenara, como depois comprovado, uso de gás tóxico contra a população. Sua fonte, com quem falava amiúde, era o próprio ditador. — No início, Sy ficou reticente em tratar do tema. Mas depois entendeu que só buscávamos algo especialmente caro a ele, a precisão — disse o codiretor Mark Obenhaus.