No Apocalipse imaginado pelo roteirista e diretor Vince Gilligan — criador de “Breaking Bad”, considerada uma das séries de televisão mais inovadoras de todos os tempos —, a Terra passa a ser habitada por pessoas assustadoramente... legais. “Pluribus”, sua nova produção na Apple TV, cujo nono e último episódio estreia na quarta-feira, reproduz uma sociedade cujos habitantes foram infectados por um vírus de outro planeta que os deixou artificialmente contentes e gentis. Os livros do ano: confira 100 títulos que foram destaque em 2025, entre ficção, não ficção, poesia e quadrinhos 'Vale tudo', 'Tremembé', 'Adolescência', mudanças no Jornal Nacional: o que 'bombou' na TV e no streaming em 2025 Apenas 12 pessoas escaparam. Entre elas, está a escritora Carol Sturka, interpretada por Rhea Seehorn. Por algum motivo desconhecido, ela resistiu a essa infecção de bondade e continua mal-humorada, debochada e reclamona. E também obstinada: não vai ceder à pressão para perder sua individualidade e se tornar um robô feliz. — Você pode ser uma pessoa desagradável e ainda assim ser um heroína. É assim que vejo a Carol — diz Vince ao GLOBO em entrevista por chamada de vídeo, ao definir que tipo de personagem é sua protagonista. Vince Gilligan e Rhea Seehorn no set de 'Pluribus' Divulgação Apple TV Depois do sucesso avassalador de “Breaking Bad” (2008-2013) com a história de um professor de química fracassado na carreira que vira produtor e traficante de metanfetamina, e do spin-off “Better call Saul” (2015-2022), focado no advogado picareta de White, Jimmy McGill, Gilligan confessa ter tido medo de contar uma história diferente e não atingir expectativas. — Estava bastante nervoso de sair da segurança do universo de “Breaking Bad” para tentar criar algo totalmente novo e muito diferente — diz o dono de quatro Emmys e 19 indicações. — Nos últimos anos, ficava repetindo para mim mesmo que, provavelmente, isso não daria muito certo, pela simples lógica de que nem tudo dá certo, estatisticamente falando. Alison Tatlock, produtora executiva e roteirista, ao lado de Vince na entrevista, admite que foi preciso correr um pouco de riscos com a produção: — Sabíamos que era uma série estranha e torcíamos para que as pessoas embarcassem na viagem, mas não tínhamos 100% de certeza. E os espectadores do mundo acabaram mostrando que gostam do estranho (risos). Rhea Seehorn como Carol Sturka e Karolina Wydra como Zosia em 'Pluribus' Divulgação Prêmios à vista Tudo indica que sim. “Pluribus” é a série mais vista da história da Apple, segundo dados da própria plataforma, ultrapassando a comédia “Ted Lasso” e o sci-fi “Ruptura”. Mas a crítica também parece compartilhar da preferência pelo esquisito. No Critics Choice, no dia 4 de janeiro, a produção concorre a melhor série de drama e Rhea, melhor atriz de drama. Foi indicada nas mesmas categorias no Globo de Ouro, no dia 11. Rhea Seehorn é uma longa parceira de Vince, desde “Better call Saul” e, por isso, uma escolha óbvia, na visão do criador, para o papel de Carol Sturka. O colombiano Carlos-Manuel Vesga e a polonesa Karolina Wydra, não. Ambos passaram por testes para os papéis de Manousos e Zosia, duas forças importantes no universo de resistência de Carol. Ele é um colombiano radicado no Paraguai que, assim como ela, sobreviveu ao vírus da felicidade e não pretende se juntar ao time dos estranhamente felizes. Ela é a pessoa designada a acompanhar a escritora nesse novo mundo. Assim como todos os habitantes da Terra, Zosia perdeu sua identidade e compartilha uma consciência coletiva. Sabe tudo, de todo mundo, do passado e do presente, em tempo real. — “Pluribus” é uma história sobre coletividade, conformidade, singularidade — diz Karolina ao GLOBO, também por videochamada. — Quem é Manouses diante desse novo mundo transformado? Os “Outros”, entre eles a Zosia, acreditam, por um imperativo biológico, que a experiência com o vírus vale a pena a qualquer custo. E, do outro lado, tem Carol, que diz: “Espera aí, a individualidade vale a pena.” Ter essa oposição é um enorme ponto de partida para conversas sobre valores e existência. Comparação com IA Vince é o tipo de criador que prefere não direcionar a audiência e deixa quem está do outro lado da tela tirar suas próprias conclusões sobre o que vê. Diz apenas que, quando começou a rascunhar “Pluribus” há alguns anos, pensava na fragmentação e polarização da sociedade e na possibilidade de “mundo mais gentil, mais amável, em que as pessoas fossem mais legais umas com as outras”. Definitivamente, ele garante, o assunto inteligência artificial ainda não estava na pauta, por isso, o “jeito ChatGPT” de Zosia e dos “Outros” não é baseado em fatos. Mas ele tem gostado de ver essas comparações. — Se as pessoas enxergam a série como algo sobre inteligência artificial e, especialmente, se saem dela com a ideia de que a IA deva ser questionado com muito rigor, sou 100% a favor disso — diz. — Todo apoio a quem assiste e pensa: “Poxa, talvez a IA não seja uma coisa tão boa assim.” Fico muito feliz com esse tipo de leitura. Por mim, podem interpretá-la assim o dia inteiro (risos). O que influenciou ‘Pluribus’ "Admirável mundo novo", de Aldous Huxley (Biblioteca Azul). O romance distópico do escritor britânico, publicado em 1932, mostra uma sociedade futurista, geneticamente condicionada a suprimir individualidades e viver baseada na ciência — e eficiência. Isso foi tema de conversas no set entre os atores e o diretor Vince Gilligan, segundo Karolina Wydra e Carlos-Manuel Vesga. “Considero um dos maiores livros já escritos”, disse Vesga ao GLOBO. “Especialmente porque ele apresenta repressão e controle não por meio do terror ou da opressão direta, mas justamente pelo contrário: convencendo as pessoas de que elas são felizes com aquilo que estão recebendo.” "Fahrenheit 451", de Ray Bradbury (Biblioteca Azul). Além de já ter mencionado “Admirável mundo novo” como referência para sua composição de “Pluribus”, Rhea Seehorn falou também sobre esta obra, publicada em 1953 e adaptada para o cinema por François Truffaut em 1966 e por Ramin Bahrani em 2018. Neste outro clássico da literatura distópica e da representação do totalitarismo, o americano Bradbury mostra um mundo onde os livros são proibidos e a vida é mediada por telas. Ao lado do “Admirável mundo novo” de Huxley e “1984”, de George Orwell, é considerada a trinca de ouro das distopias escritas no século XX. "Vampiros de almas" (1956) e "Invasores de corpos" (1978). Tanto a primeira quanto a segunda versão de “Invasion of the body snatchers” são, para Vince Gilligan, “ótimas referências” para “Pluribus”, conforme ele disse ao site Polygon. Nos filmes, alienígenas sequestram as mentes da população de uma cidade, apagando sua individualidade em nome de uma coletividade. A série claramente dialoga com essa história quando todos os habitantes da Terra compartilham uma mente coletiva, não ameaçadora, mas profundamente amigável — e, para Carol, altamente irritante. ‘O enigma de outro mundo’ (1982). O filme do diretor John Carpenter também entrou na lista de referências de Vince Gilligan. Segundo o roteirista, o longa de terror tem “o final perfeito” para o gênero. Na história, numa estação remota de pesquisa na Antártida, cientistas descobrem extraterrestres que conseguem reproduzir a forma humana, sem copiar qualquer humanidade. Em “Pluribus”, o paralelo é semelhante, e fica a questão: se as identidades desaparecem, o que define Zosia e os Outros ainda como humanos? Na onda de 'Pluribus’ The leftovers (HBO Max). Nesta série de 2014 criada por Damon Lindelof, um dos nomes por trás de “Lost”, 2% da população mundial desaparece misteriosamente. Um chefe de polícia (Justin Theroux) e uma viúva (Carrie Coon) tentam se adaptar a um mundo traumatizado por essa “Partida Repentina”, como o evento ficou conhecido. Maniac (Netflix). Nesta minissérie com Emma Stone e (novamente) Justin Theroux, um experimento farmacêutico promete resolver todos os problemas, sem complicações ou efeitos colaterais. Annie Landsberg (a personagem de Emma) topa a “viagem” para tentar curar traumas e consertar relações conflituosas. Justin Theroux e Emma Stone em 'Maniac' Netflix Ruptura (Apple TV). Também indicada como melhor drama ao Critics Choice e ao Globo de Ouro, que acontecem em 4 e 11 janeiro, respectivamente, esta série reflete a ideia da perda de identidade com os funcionários da misteriosa Lumon. Eles topam ter o cérebro modificado para que, no trabalho, não lembrem das memórias de vida pessoal e vice-versa. O último cara da terra (Disney+). Nesta comédia de 2015, com quatro temporadas, Phil Miller, interpretado por Will Forte, é o único sobrevivente de uma pandemia que nocauteou a Terra. Dois anos depois da tragédia, ele sai de carro pelos Estados Unidos, Canadá e México tentando confirmar se ele realmente está sozinho na vida.