Com voz doce e jeito delicado, maquiagem leve, unhas feitas e o cabelo curtinho penteado para o lado, a atriz Letícia Rodrigues em nada lembra Sandrão, sua personagem em “Tremembé”, do Prime Video, série de maior audiência da plataforma no Brasil até então. O papel da criminosa de moicano descolorido e visual masculino, líder da prisão feminina de mesmo nome no interior paulista e que, em 2014, se envolveu romanticamente com Suzane Von Richthofen (Marina Ruy Barbosa), é o primeiro grande trabalho da paulistana de 35 anos. “Questionavam-me nas redes sociais: como transformaram essa mulher linda em um ‘cão’?”, brinca Letícia, por chamada de vídeo. “Nunca tive cabelo curto, e meus traços e vestimentas sempre foram muito femininos. Às vezes, esquecia de arrumar o moicano e saía com o cabelo bagunçado. As pessoas me olhavam estranho”, continua ela. No set, apenas de protetor solar e a cara fechada de poucos amigos, assustava até mesmo os colegas. “Algumas pessoas ficavam com medo de me dar bom dia”, relembra. Além de Marina, com quem trocou beijos na ficção, Sandrão também foi namorada de Elize Matsunaga, na trama interpretada por Carol Garcia. “Foi bonito ver Letícia florescer do primeiro dia de ensaio até o resultado na tela. Foi um trabalho belíssimo de composição”, elogia a parceira. A atriz Letícia Rodrigues se submeteu a uma radical mudança no visual para encarnar a personagem Sandrão (à direita) na série 'Tremembé' Reprodução/Instagram e Divulgação/Prime Video Responsável pela caracterização da série, Britney Federline explica que a disponibilidade de Letícia como atriz é um dos motivos do sucesso de sua Sandrão. “Ela estava entregue para trocarmos, me ajudou a guiá-la no processo. Cortamos o cabelo aos poucos, até para que entendesse o caminho que estávamos seguindo”, conta. “Letícia é uma grande atriz, e fico feliz que tenha se destacado.” A atuação impressionou até mesmo a idealizadora de “Tremembé”, Julia Priolli. “Foi muito interessante perceber como uma personalidade suave e delicada como a dela conseguiu se apropriar de uma personagem tão complexa. Quando a reencontrei agora, um ano depois das filmagens, demorei pra reconhecê-la”. Com uma carreira independente há 17 anos e pequeníssimas participações em séries como “Raul Seixas: Eu sou” (2025), da Globoplay, e “Manhãs de setembro” (2021), também do Prime Video, Letícia sempre viveu dentro dos sets, em funções administrativas. “Eram papéis de alguém que não tem fala, nem personalidade, só uma pequena função na trama”, afirma. Mas os constantes “nãos” para viver algo maior na dramaturgia quase a fizeram desistir, no ano passado. “ Embora eu seja uma ‘realista esperançosa’, como diz Ariano Suassuna, é algo que afoga a sua fé. Sou de uma família humilde, vim de uma realidade difícil. Meus pais sempre me apoiaram e permitiram correr atrás dos meus sonhos”, diz, entre lágrimas. A atriz Letícia Rodrigues Thais Cunha A emoção se justifica ao resgatar a própria história. Nascida no Tatuapé, Zona Leste de São Paulo, começou a trabalhar aos 14 anos. Foi de tudo um pouco: animadora de festas infantis, caixa de supermercado, garçonete, bartender e professora de inglês. Até tentou seguir uma profissão tradicional e cursou o primeiro período de Engenharia Química, na Unifesp. Mas, aos 19, decidiu largar tudo para se dedicar integralmente ao teatro. A primeira barreira, no entanto, foi imposta em razão do seu corpo. “Eu era obesa. Sempre ouvi que não iria fazer a Julieta nem a Ofélia (ambas personagens de Shakespeare), tampouco, a mocinha da novela. Nem mesmo para ser a vilã eu servia. A possibilidade de ser atriz era quase nula”, diz Letícia. “Sofri muito bullying e outras tantas violências por causa do meu corpo. Era assediada no metrô, tive relacionamentos amorosos e de trabalho abusivos.” Batalhadora, Letícia fez do limão uma limonada. Em razão da forma física, concebeu, em 2018, o espetáculo “116 Gramas: Peça para emagrecer”, solo autoral em que a premissa era perder peso durante a performance, imitando um circuito de exercícios físicos de uma academia. “Pensei: ‘Já fiz de tudo para emagrecer, menos uma peça’. Calculando o quanto era possível perder em calorias e peso em uma hora, deu quase 116 gramas”, conta. Por causa de problemas de saúde, submeteu-se, em 2022, a uma cirurgia bariátrica. “Cheguei a pesar 162 quilos, e demorei a aceitar que seria necessário. Tenho planos para o futuro para esse corpo, não só como artista, mas para formar uma família. Quero ser mãe”, revela ela. O caminho escolhido, explica, foi desenhado para que não sofresse mais tantas violências. “Foi algo que me custou muito emocionalmente, mas quis reduzir os danos.” A atriz Letícia Rodrigues Thais Cunha Casada há três anos com a designer gráfica Maria Luiza Graner, Letícia tem “pequenos grandes sonhos” além da maternidade: “Viajar uma vez ao ano, pagar as contas no débito automático e, quando tiver filho, colocá-lo numa boa escola”, garante. E os projetos não param. A atriz, que em breve estará em uma produção da Netflix, sonha com sua primeira novela. “Se me chamarem hoje, amanhã já estou no Rio”, brinca. Dois mil e vinte e cinco foi mesmo o ano dela.