Aos 65 anos, o paulista Reinaldo Lourenço soma 41 anos da marca que leva seu nome. Nascido em Presidente Prudente, trabalhou ao lado de Gloria Coelho antes de fundar a etiqueta. Atualmente, possui uma loja própria (no shopping Iguatemi, SP) e está presente em 50 multimarcas. Inaugurou oficialmente em 2025 um ateliê especial para atendimento do segmento sob medida, no bairro de Pinheiros (SP). Desde 2023, vem apresentando desfiles de coleções couture. Natural de Monte Belo, no sul de Minas Gerais, o estilista de 28 anos Mateus Cardoso estudou moda na Faculdade Santa Marcelina e começou a chamar a atenção em 2019, ano de sua graduação, quando ganhou o concurso Sou de Algodão e desfilou suas primeiras coleções em duas edições da Casa de Criadores. Seu desfile no SPFW, em 2023, foi um dos mais comentados da temporada, e seu trabalho resgata o ofício da alfaiataria. Mateus recebe seus clientes em um ateliê em São Paulo e produz sob encomenda - e, desde novembro, possui uma plataforma de e-commerce com peças à pronta entrega. Abaixo, confira o encontro da dupla: Mateus Cardoso Vogue Brasil/ Gil Inoue Reinaldo Lourenço Vogue Brasil/ Gil Inoue Vogue: As pessoas têm ideia do trabalho que há por trás da confecção de uma peça? Mateus: No início da minha trajetória, me assustei ao descobrir quanto trabalho envolve uma roupa bem-feita. Mas foi isso que me instigou. Quanto mais aprendia, mais percebia que pouco sabia, então fui atrás. E é assim até hoje. A gente nunca chega numa roupa perfeita, sempre há espaço para melhorar. Reinaldo: Com tanto fast-fashion no mundo, não tenho certeza se todas as pessoas conseguem dimensionar o que é uma roupa bem-feita. De bom corte, modelagem, tecido. Para mim, é muito importante ter uma equipe boa, sou superexigente, e as pessoas que trabalham comigo também têm essa cultura. Confecciono a maior parte das criações dentro da marca, não é terceirizado. Tenho uma equipe grande, de 70 pessoas. Quatro modelistas, 16 costureiras, piloteiras, arremate, acabamento, passadoria...Minha fábrica é dividida em duas seções, alfaiataria e fluido. Os grandes ateliês em Paris têm esses dois lados bem divididos, tailleur e flou. Reinaldo: Comecei a aprender alfaiataria, mesmo, comprando roupas antigas e abrindo-as, estudando-as. Para entender onde ia a entretela, tudo. Roupa de festa, corset... Tenho um acervo enorme, desde peças vitorianas e eduardianas, muitas roupas dos anos 50, vestido Dior da época... Até hoje, costumo estudar peças antigas. Mateus: Você percebe que aquela peça não foi feita correndo apenas para que uma coleção fosse entregue, mas para atravessar o tempo. Na época da faculdade, fui atrás de um curso de camisaria, foram quatro meses aprendendo a fazer uma camisa, isso me deu uma boa base. Daí, mapeei os alfaiates de São Paulo e encontrei um que pudesse me ensinar outras peças. Alfaiataria artesanal, paletó feito à mão. Foi muito importante aprender as bases clássicas para desconstruí-las no meu processo criativo. Reinaldo: Só conseguimos desconstruir algo quando se conhece a essência. Mateus: Via pessoas que faziam alfaiataria clássica muito bem, mas o corte não mudava. Já na faculdade, você era instigado a pensar o diferente, mas sem nenhuma técnica. E aí percebi que juntar os dois seria um caminho. Hoje, na minha marca, trabalho com sob medida, um projeto muito legal. Tem gente que busca um paletó para ser o primeiro paletó. Outros, algo para um evento. É uma troca bem próxima. Após os desenhos, na primeira de algumas provas, acertamos na tela proporções; se o abotoamento é duplo ou simples, botões, uma discussão mais técnica sobre a roupa. Comecei pelo sob medida também por conta de estrutura. Só seria necessário, além do meu conhecimento, uma máquina de costura e um ferro, não demandava um enorme investimento inicial. Um grande desafio que sinto agora é de como crescer sem perder essa alma. Reinaldo: Tem que ser devagar. Mateus: Até porque é difícil encontrar os colaboradores certos, treinar fornecedores. Agora que estou começando a testar fazer algo com fornecedores de fora. Reinaldo: Quando se fala em escala, no Brasil, não temos uma indústria de moda. Como foi na Itália, que é expert em fazer roupa, é preciso investir em profissionais: costureiras, modelistas, quem passe o molde para o computador... Quando cheguei a São Paulo, nos anos 1980, tinha muita tecelagem boa. Tricolines maravilhosas para se fazer camisa. Renda. Fábrica de jacquard, de seda pura. Acabou tudo. Mateus: Vejo pessoas que se interessam, mas não sabem muito como e onde aprender. Mesmo a Escola dos Alfaiates e Camiseiros de São Paulo, onde estudei, fechou depois da pandemia. Reinaldo: Precisaria haver incentivo governamental para formar e capacitar pessoas. Imagina o que poderia render de divisa, se tudo fosse produzido no Brasil e não na China, quantas pessoas poderiam estar empregadas. Nos anos 1980, a China contratou vários profissionais de Paris e da Itália para que ensinassem princípios de modelagem, costura, corte. Investiu na tecnologia e na capacitação. A gente podia copiar esse exemplo. Tive um projeto alguns anos atrás, que capacitou durante um mês 20 profissionais refugiados, incluindo vítimas de trabalho escravo. Você não sabe a alegria, o quanto essas pessoas cresceram dentro do ateliê. Vogue: Vimos, nestes últimos meses, uma desaceleração do consumo no mercado de luxo. As pessoas estão fadigadas diante de tantos lançamentos? Reinaldo: Tem muita roupa no mundo. Não sei se as pessoas usam tudo o que elas têm, assim, pelo hábito de comprar. Deveria se comprar menos, mas peças de mais qualidade. Inclusive por questões ambientais. Como estilistas, temos que conhecer bem nosso cliente e fazer algo diferente do que existe no mercado. A marca teve um crescimento significativo agora no atacado. As lojistas compravam de muitas marcas e, aí, chegaram à conclusão de que é melhor ter uma roupa de maior qualidade, e que não vai sair de moda tão fácil. A cabeça do consumidor está mudando. Reinaldo: Como você começou a se interessar por moda? Mateus: Meus pais trabalham com café e nasci em uma cidade bem pequena, a profissão de estilista nem existia por lá. Mas as pessoas sempre me pediam ajuda para se vestir, sabe? Quando li sobre moda, meu olho brilhou. E aí consegui uma bolsa na Santa Marcelina, aos 18 anos. E você? Reinaldo: Eu queria ser estilista desde pequeno. Com 15 anos, fazia roupas para os meus amigos em Presidente Prudente. Naquela época, não se comprava tantas peças prontas em lojas; tínhamos uma costureira, a Ruth, que vinha em casa. Eu desenhava, ela executava e eu vendia para os amigos. Aos 18, vim trabalhar em São Paulo e fui assistente da Gloria [Coelho], com quem depois me casei e que admiro muito. Ela é a pessoa com mais identidade de roupa no Brasil. Vogue: Para completar 40 anos na moda brasileira, é necessário, além de talento criativo, ser bom de business. Você já teve vontade de vender sua marca para um grupo? Reinaldo: Já tive muita vontade, mas, graças a Deus, não vendi. Por duas vezes, já deixei uma mesa de negociação. Vogue: Como se manter atual após 40 anos? Reinaldo: Tenho fascinação pelo novo. Adoro viajar, ver roupa, o que se está usando na rua. Entender o desejo das pessoas. Mas a moda não tem muito segredo. Quando você faz moda há muito tempo, já sabe a receita do que vai ser novo, velho, do que segue por mais uma estação. Adoro ir nas grandes marcas de fast-fashion, para daí fazer tudo diferente. Vogue: Mateus, você desfilou uma única vez no SPFW, em 2023, após algumas edições na Casa de Criadores e, desde então, não se apresenta. E você, Reinaldo, tem preferido desfilar coleções couture e apenas uma vez ao ano. Quando é o momento certo de desfilar? Reinaldo: Já tenho os lançamentos comerciais estruturados, então o caminho que quero seguir com os desfiles é apresentá-los quando tiver vontade, com bastante da minha alma mesmo, sabe? E não apenas fazer mais uma roupa. Mateus: Para mim, faz sentido desfilar quando tenho um bom projeto e tenho apoio. Mas é preciso que eu estabeleça algumas bases, peças-chave da marca, antes de voltar a fazer desfile. Porque eu dedicava tudo para o desfile, tempo, dinheiro – e, por não ter um estoque, era um marketing que não dava em nada financeiramente falando, sabe? Foi muito importante fazer, mas é preciso fazer e depois pagar as contas. Reinaldo: Vejo muitos jovens que conseguem fazer uma, duas coleções e, depois, infelizmente, acabam se decepcionando porque tudo é muito caro, né? Desfile é muito caro. Mateus: Ao fazer por fazer, apenas por querer estar ali, ou para ganhar visibilidade, as pessoas morrem na praia. Esse desejo de fazer um desfile apenas pela “fama” para mim acabou muito cedo. Senti a necessidade de desenhar um formato que funcionasse para o meu tipo de vida, para o meu caixa financeiro. Abrir uma empresa, loja, ter estoque, não funciona para mim neste momento. A criatividade, mais do que na roupa, tem que ser usada muito ao fazer acontecer. Projetar um caminho que você consiga realizar. Vogue: Ambos têm um perfil mais discreto. Faz falta aparecer mais nas redes sociais? Reinaldo: Faz. Sempre ouço da minha equipe que deveria estar mais visível, falar. Vejo que quem fala engaja muito mais. Mas não nasci para isso. Nem para ser jornalista, nem, por outro lado, mostrar meu dia a dia, o que e como. Eu morro de vergonha. Mateus: Acho que satura também. Se alguém está muito na internet, você enjoa de ver aquela pessoa. Reinaldo: Acho que o seu trabalho, enquanto trabalho, perde a força. Passa a ser muito sobre a pessoa. Você fica visível, mas seu trabalho desfoca. Mas tem gente que se deu muito bem assim. Estilistas que são influencers, antes de serem estilistas. Mateus: Sinto que a internet não é muito para mim, não quero estar ali, sabe? Se estivesse, as coisas inclusive rolariam melhor. Mas não é o meu perfil. Reinaldo: A gente tem um trabalho mais raiz mesmo de moda. Mateus: O que você gosta de fazer para se desligar da moda? Reinaldo: Eu só gosto de fazer isso. Se “pudesse”, eu trabalharia também aos sábados e domingos [risos]. Mas estou evoluindo... Vogue: Evoluindo, depois de 40 anos [risos]. Reinaldo: Não costumo passar mais 12 horas todos os dias na fábrica. Gosto de cozinhar, uma coisa que aprendi na pandemia. Adoro ficar em casa, bem canceriano. Mateus: É difícil desligar, a gente pensa no trabalho o tempo todo. Mas se eu preciso tomar uma decisão, sinto que se sair de São Paulo, descanso, consigo limpar minha mente. Apesar de fazer uma roupa luxuosa, gosto de tudo que é simples. E de organizar minha vida de uma maneira que não seja só sobre trabalho. Reinaldo: Qual é a primeira imagem de moda da qual você tem memória? Mateus: Imagens antigas da minha família. O casamento dos meus pais, a família do meu pai nos anos 1950... Tenho sentido essa necessidade, inclusive, de aproximar a moda da vida real, sabe? Tentar olhar para o que é real, para, a partir dali, projetar um sonho. E você? Reinaldo: Me lembro de um vestido vermelho de veludo que foi feito para minha irmã, ela é dois anos mais nova do que eu e até hoje guardo essa imagem. Eu era muito levado quando criança. Certa vez, minha mãe e minha tia não quiseram me levar para comprar tecido com elas e fui escondido mesmo, no banco de trás do carro. Chegando lá, apareci atrás do balcão da loja. Queria achar um tecido de florzinha para fazer uma camisa. Vogue: A narrativa ficou mais importante do que a roupa? Reinaldo: Mesmo ao ler críticas de moda, sinto que as pessoas não falam da roupa. Ou elas não sabem descrever uma roupa ou a roupa não interessa para elas. Vogue: Ou a roupa é menos interessante do que o resto naquele desfile. Reinaldo: Mas poucos vão ao camarim, interessados, como vocês, olham o acabamento por dentro, por fora... A maioria escreve para causar na internet ou para poder se expressar mesmo. Mas, geralmente, é relacionado ao comportamento e não à roupa. A impressão que tenho é de que as pessoas não gostam tanto de roupa como elas pensam. Mateus: Ou as pessoas que gostam de roupa não estão ali, né? Não têm acesso àquele lugar. Tenho pensado muito sobre como apresentar um projeto. Vou a desfiles, e o formato já não me emociona tanto. A modelo passa tão rápido, o que ia me encantar ali era a roupa e não dá tempo de vê-la. Vogue: Boa parte dos grandes desfiles de hoje é superprodução, grandes espetáculos. Marketing, contar uma história. Reinaldo: São grandes empresas, entendo. Que têm faturamento absurdo, precisam impressionar, viralizar, tudo que for possível para vender. Temo lado pirotécnico e temo lado da roupa. Lógico que o pirotécnico encanta mais. Elas conta muma história, geram conteúdo. Por outro lado, tem algumas marcas que fazem um desfile sem nada e é lindo. Porque ali tem roupa. Lembro de quando comecei a ir para Paris, nos anos 80, e o Margiela fazia desfile no metrô, não tinha nem iluminação... e ele virou o Margiela. Mateus: Tem vários caminhos pirotécnicos que se pode seguir, mas aí percebo que nem eu, nem as pessoas próximas a mim estão tão interessadas. Daí penso: onde o desfile nasceu? Por que ele existe? E acho que aí tem um ponto de partida. Reinaldo: Talvez você, Mateus, não precise mesmo fazer um desfile de custos altíssimos. Você só tem que mostrar o seu trabalho. Você faz lá 20 looks bons, 30 looks. Mostra para as pessoas que te interessam. E é isso que vai valorizar o seu trabalho. Ir contra o que as pessoas estão fazendo. O começo da alta-costura no mundo era assim. É o que pretendo fazer no meu próximo desfile. Não quero causar, quero mostrar a coisa certa para a pessoa certa. Fotos: Gil Inoue Styling: Fred Rocha Arte: Heitor Ferreira Beleza: Juliana Coelho Assistentes de Foto: Igor Kalinouski e Rodrigo Gonçalves Assistente de Beleza: Pamela Hubner Agradecimentos: Casa Bontempo