Uso da inteligência artificial na medicina exige evidência científica, avalia oncologista

A sobrecarga dos médicos e dos hospitais no Brasil deixou de ser apenas um problema organizacional e passou a afetar diretamente a qualidade do cuidado, a segurança do paciente e a saúde mental dos profissionais. Estimativas amplamente citadas na literatura indicam que médicos chegam a gastar entre 30% e 40% da jornada em tarefas administrativas, como preenchimento de prontuários, revisão de exames, relatórios e reconciliação de informações em sistemas fragmentados. Esse tempo é subtraído do núcleo da prática médica: escuta, raciocínio clínico e decisão compartilhada.  É nesse contexto que a inteligência artificial (IA) começa a oferecer uma resposta concreta. Diferentemente da narrativa que sugere a substituição de médicos, as aplicações mais maduras da IA atuam como tecnologia de infraestrutura, automatizando tarefas repetitivas e padronizáveis. Ferramentas de apoio à documentação clínica, triagem e organização de dados já demonstram potencial para reduzir entre 20% e 30% o tempo dedicado a registros e atividades administrativas, devolvendo horas ao cuidado direto.  Essa transformação foi descrita em artigo publicado na Nature Biotechnology, que aponta o potencial da IA em diferentes frentes da medicina clínica, da pesquisa e da educação. O ponto central, no entanto, não está na automatização de decisões médicas, mas na redução do atrito do sistema, permitindo que o médico concentre sua atenção em atividades que exigem julgamento clínico e interação humana.  No Brasil e na América Latina, o debate ganha urgência adicional devido à escassez e à má distribuição da força de trabalho em saúde, especialmente em áreas de alta complexidade como a oncologia. A demanda cresce mais rapidamente do que a capacidade de formação de especialistas. Estudos recentes publicados na Lancet Oncology indicam que soluções baseadas em IA podem atuar como estratégia de sistema para mitigar essas lacunas, ao melhorar eficiência, padronização e acesso em contextos com recursos limitados. Nesse cenário, eficiência deixa de ser um diferencial tecnológico e passa a ser um instrumento de equidade.  Entretanto, a adoção da IA na saúde não está isenta de riscos. O avanço das ferramentas convive com lacunas relevantes de preparo profissional e de avaliação crítica. Pesquisas internacionais sobre o uso de IA generativa na medicina apontam uma combinação de interesse crescente e consciência sobre implicações éticas, além da necessidade de práticas padronizadas de avaliação e reporte. O uso sem critérios pode introduzir vieses, erros e uma falsa sensação de segurança clínica.  Esse cenário também evidencia desafios na formação médica. À medida que tecnologias de inteligência artificial e aprendizado de máquina avançam em direção à prática clínica, o papel tradicional do médico passa por transformações. Especialistas têm destacado que a ausência de formação adequada em IA pode dificultar a capacidade dos profissionais de avaliar algoritmos, interpretar evidências e reconhecer limitações tecnológicas, o que tende a ampliar, e não reduzir, a sobrecarga do sistema.  Diante disso, o impacto real da inteligência artificial na saúde brasileira dependerá menos da sofisticação dos algoritmos e mais da capacidade institucional de formar profissionais com pensamento crítico, alfabetização em dados e compreensão dos princípios básicos da IA. Iniciativas de educação médica vêm sendo desenvolvidas justamente nessa interface entre prática clínica, pesquisa e tecnologia, com foco em preparar profissionais para o uso seguro, ético e eficiente dessas ferramentas.  Quando bem implementada, a inteligência artificial pode contribuir para a redução de filas, a melhoria dos fluxos assistenciais, a qualificação dos registros clínicos e a ampliação do tempo dedicado ao cuidado direto. Quando mal utilizada, pode acrescentar uma nova camada de complexidade a um sistema já sobrecarregado. A decisão, portanto, é menos tecnológica e mais educacional, científica e institucional. A IA não substitui o médico, mas pode ampliar a capacidade de profissionais preparados para exercer aquilo que nenhuma tecnologia reproduz: o julgamento clínico e a relação humana com o paciente.  Sobre o especialista  Fabio Y. Moraes é médico radio-oncologista, professor e pesquisador com atuação nas áreas de oncologia, saúde digital e medicina baseada em evidências. É professor na Queen’s University, no Canadá, e vinculado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Sua produção acadêmica e atuação profissional concentram-se na interface entre prática clínica, pesquisa e educação médica, com foco na avaliação crítica e no uso responsável de tecnologias digitais e inteligência artificial na saúde.