Prêmio literário na França homenageia pets e reforça laços afetivos: 'O animal é um vetor de humanidade'

Era o último evento da agitada temporada de premiações literárias de novembro na França, e o elegante Salão Goncourt do histórico Restaurante Drouant, em Paris, estava repleto de câmeras de TV e membros da imprensa. Mas um dos homenageados mais esperados não pôde estar presente. O setter inglês em questão, um cão-terapeuta e tema do Prêmio 30 Milhões de Amigos deste ano para não ficção, estava na festa de aniversário de um menino de 2 anos hospitalizado. Na sua ausência, Sandra Kollender, autora do ensaio “Snoopy, un chien qui fait du bien” (“Snoopy, um cão que faz o bem”), aceitou o prêmio de mil euros (cerca de R$ 6.600), que, segundo as regras do prêmio, deve ser doado a uma instituição de caridade para animais. — O animal é um vetor de humanidade — disse Kollender em entrevista logo após receber sua medalha, ao lado de representantes do Institut Curie Paris, hospital onde Snoopy trabalha. — Sentimos emoções extremamente fortes, às vezes até avassaladoras. Precisamos respirar; precisamos de uma presença gentil e alegre. Um cachorro nos proporciona isso. A autora Sandra Kollender (à esquerda), o cão Snoopy e parte da equipe do Institut Curie Hospital, em Paris, onde o cachorro auxilia no tratamento de crianças Violette Franchi/The New York Times Aconchegante, pontuada por vitrines que exibem gravuras e manuscritos antigos, a Sala Goncourt sedia desde 1914 a cerimônia de entrega do prêmio literário homônimo, para os melhores livros em língua francesa do ano, e, desde 1926, do Prêmio Renaudot. Há décadas, o Prêmio Literário 30 Milhões de Amigos também é entregue aqui. Num país cujo amor pelos livros, pela argumentação e pelos prêmios literários só é comparável ao carinho pelos animais de estimação, o “Prêmio Goncourt dos Animais” é certamente o mais doce desses ritos, e não menos prestigiado. — As pessoas conseguem escrever com grande emoção e honestidade sobre os seus animais — afirmou Didier Decoin, secretário da Academia Goncourt e jurado do Prêmio 30 Milhões de Amigos. — E quem melhor para falar sobre a fabulosa relação entre animais e humanos do que escritores e filósofos? Programa de TV O prêmio tem origem num programa de televisão com o mesmo nome, transmitido pela primeira vez em 1976, idealizado pelo jornalista Jean-Pierre Hutin e pela sua esposa, Reha. Segundo Reha Hutin, hoje com 80 anos e elegante presidente do júri, ela e o marido (falecido em 1996) amavam animais e esperavam chamar a atenção para o tratamento dos animais de estimação, “filmando animais domésticos como se fossem os animais selvagens dos documentários, com o mesmo respeito”. A série se tornaria um dos programas de televisão franceses de maior duração de todos os tempos, apresentando animais de estimação de celebridades e de pessoas comuns, ao mesmo tempo que destacava a causa do bem-estar animal. Desde 1995, o programa “30 Millions d’Amis” também se tornou uma fundação de grande influência. O título não significava nada, explicou Hutin: — Apenas um número que soava bem; é claro que existem muito mais animais do que isso na França! Ela reforçou que o casal queria disseminar sua mensagem de forma delicada. — A abordagem militante não era para nós — disse Hutin. — Eu adoro Brigitte Bardot, mas, na verdade, ela exagera um pouco. Em 1978, em grande parte inspirados pelo número de escritores que compartilharam seus animais no programa de TV, nasceu a revista “30 Millions d’Amis”. Essa iniciativa multimídia mirava diretamente no coração. — Nós, franceses, temos uma relação interessante com os animais — disse Hutin. — Por um lado, nós os adoramos, levamos nossos animais a cafés, mas, por outro, até 1995, ainda operávamos sob essa definição cartesiana de animal como propriedade móvel. Assim, “30 Millions d’Amis” — a marca, a ideia e a fundação — foi fundamental para defender com sucesso uma mudança na linguagem jurídica, com os animais agora sendo considerados “seres sencientes”. Em 1982, o próprio prêmio foi criado. Sentados nas cadeiras reservadas aos jurados do Prêmio Goncourt, o primeiro júri incluiu os Hutins e Decoin, juntamente com o ministro da cultura da França, editores, romancistas e jornalistas renomados. Jean-Louis Hue foi o vencedor, com o tratado “Le chat dans tous ses états” (“O gato em todos os seus estados”). Desde então, o prêmio se expandiu para incluir tanto ficção quanto não ficção. Entre os vencedores subsequentes, encontram-se muitos outros livros sobre cães e gatos, mas também títulos como “La sagesse des élephants” (“A sabedoria dos elefantes”), “Comment parler baleine” (“Como falar baleia”), “Au nom des requins” (“Em nome dos tubarões”) e, em tradução francesa, o sucesso internacional “As aventuras de Pi”, centrado em um tigre. — Este se tornou, de longe, o prêmio literário mais importante, senão o único, dedicado aos animais e ao bem-estar animal — afirmou o jornalista Frédéric Vitoux, jurado há 20 anos. — Este prêmio me parece importante, até essencial, porque ajuda a conscientizar um público amplo sobre o mundo animal. E faz isso sem demagogia. Onze romances e dez obras de não ficção estavam na lista de finalistas deste ano, incluindo “L’Élégance animale” (“A elegância animal”), “Le sourire du chimpanzé” (“O sorriso do chimpanzé”) e “Trente millions d’orgasmes” (“Trinta milhões de orgasmos”), uma análise da vida erótica do mundo zoológico. Escolha unânime “Snoopy” foi a escolha unânime na categoria de não ficção. O livro não só atendeu aos rigorosos critérios de mérito literário do júri, como também contribuiu para uma causa muito querida pela Fundação 30 Millions d’Amis: levar mais animais aos hospitais franceses. O prêmio tem, sem dúvida, uma dimensão social. — Ao longo de 35 anos, observei que o júri se tornou influente na defesa dos direitos dos animais porque as editoras agora demonstram um interesse genuíno pelo assunto — disse Irène Frain, uma das juradas. Mas o selo distintivo do prêmio estampado na capa de um livro também costuma impulsionar as vendas. O prêmio ajudou “Son odeur après la pluie” (“Seu cheiro depois da chuva”), a carta de amor de Cédric Sapin-Defour a um cachorro perdido, publicada em 2023, a vender mais de 300 mil exemplares. O romance vencedor deste ano, “D’une beauté sauvage” (“Uma beleza selvagem”), de Christian Signol, aborda uma questão espinhosa na França contemporânea: a reintrodução de lobos na região de Limousin e os consequentes conflitos entre agricultores, pastores e defensores dos animais. — Ele é um romancista que já goza de considerável sucesso popular, mas que o meio literário tende a subestimar, talvez justamente por isso. O que é injusto — disse Vitoux. Em entrevista, Signol falou sobre a importância de ser reconhecido por um grupo tão importante. — Este prêmio significa que a maneira mais eficaz de defender a causa dos animais é adotar a perspectiva deles. Foi o que fiz em vários capítulos deste romance, colocando-me no lugar de um lobo, experimentando seu olhar, seus instintos e seu sofrimento. É uma técnica literária que Jack London usou em “Caninos brancos”. Houellebecq na área Os jurados têm mandato vitalício. Mas talvez o membro mais famoso do júri tenha se destacado por sua ausência: nos últimos três anos, o controverso escritor Michel Houellebecq recusou-se a sair do isolamento para participar como jurado do prêmio — embora, por muitos anos, este tenha sido o único júri literário do qual participou e o único evento em que a imprensa sabia que ele compareceria com certeza, frequentemente acompanhado de seu corgi, Clément. — Uma multidão de jornalistas sempre invadia a sala de jantar, correndo para entrevistá-lo — disse Frain. De fato, Houellebecq era fã muito antes de ser jurado; depois de ganhar o Prêmio Goncourt (humano), ele mencionou a revista e seus derivados com tanta frequência em entrevistas que Hutin se sentiu motivada a convidá-lo. — Ele sente muita falta — disse ela. Os animais de estimação costumavam acompanhar os jurados humanos na cerimônia, até que alguns incidentes aconteceram. Um furão assustado mordeu seu dono. Depois, há alguns anos, um gato se assustou, houve escaladas nas cortinas, cadeiras quebradas; e o júri, com pesar, proibiu a presença de todos, exceto os mais bem treinados. Vitoux disse que se envolveu por causa de sua paixão por gatos, que abrange diversas obras e surgiu em sua biografia de Céline. — Amo gatos e para mim é impossível viver sem um em casa. Sem um gato, a casa fica sem vida.