Fé e esperança brotam no lugar da dor na Baixada Fluminense

Na pequena Igreja de Nossa Senhora dos Mártires, no Jardim Amapá, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, a pintura de Nossa Senhora de Guadalupe, com um bebê nos braços, atrás do altar, tem a seu redor os desenhos de outras três crianças. Ao lado, a silhueta de uma grávida. As imagens remetem a uma tragédia da violência urbana que marcou o bairro nos anos 1980 e, desde então, tornaram-se símbolo de fé e esperança para os fiéis. Leo Aversa: 'Aproveite a mesa cheia, você vai descobrir mais tarde que nada é para sempre' Natal acolhedor: conheça histórias de mulheres que sobreviveram a tentativas de feminicídio no Rio Há 37 anos, o Jardim Amapá — bem perto do limite com Belford Roxo — tinha a maioria de suas ruas de terra batida. Em uma casa simples, uma pequena birosca garantia o sustento de pai, mãe e três filhos. Furiosos com o comerciante que não quis ceder o espaço para a instalação de um ponto de venda de drogas, os bandidos invadiram o imóvel em 3 de maio de 1988. A mãe, grávida, foi a primeira a ser morta a tesouradas. As filhas, de 5 a 9 anos, foram violentadas e esganadas. Por fim, o pai, obrigado a assistir às cenas de crueldade, foi assassinado. A chacina aconteceu no quarto onde a família dormia. Para destruir qualquer tipo de vida, a barbaridade foi além. Antes de fugir, os assassinos mataram pássaros criados na casa e arrancaram flores plantadas no quintal. Os culpados pelo ataque nunca foram localizados. ADPF das Favelas: Plano de reocupação territorial prevê bases integradas de segurança que funcionarão 24 horas em comunidades O medo tomou conta da região, e, por um ano, a residência ficou fechada. Até que, em meados de 1989, moradores e o padre Luigi Bruno, que morreu em 2022, resolveram entrar no imóvel. Ao chegarem ao quarto, em meio a móveis revirados, eles viram uma roseira, com flores brancas, que brotara em uma das paredes. A planta nasceu do lado de fora, e um ramo, de alguma forma, atravessara o concreto e floriu no cômodo em que a chacina acontecera. Quando abriram a porta, viram que havia uma roseira saindo da parede, um sinal de Deus. Era um sinal de vida, uma roseira com rosas brancas. Ela nasceu e ultrapassou a parede! O pé estava do lado de fora, e os galhos atravessaram. Ali, a gente entendeu que Deus estava mostrando que, diante da morte, a vida vence — Maria de Fátima da Silva, de 67 anos, moradora do bairro O nascimento da roseira também é encarado pelo padre Renato Gentile, um dos responsáveis pela celebração de missas hoje no templo, como um presságio de que ninguém deve desistir da vida. — É um sinal de Deus para que ninguém nunca desista, mesmo diante de quem quer nos matar — disse o religioso. Igreja comprou imóvel Em outubro de 1989, a casa acabou sendo comprada pela Diocese de Duque de Caxias, e uma missa ao ar livre foi celebrada no Natal daquele ano, embaixo de uma mangueira. A igreja, no entanto, só ficou pronta uma década depois. O padre Renato Gentile explicou o significado da pintura das três crianças e do bebê, vítimas do assassinato, ao lado de Nossa Senhora do Guadalupe. A foto das irmãs na entrada do cômodo onde ocorreu a chacina em 1988 Fabiano Rocha/Agência O Globo — A igreja nasce justamente a partir deste crime, que foi encarado como algo que deveria ter uma resposta de fé, uma vez que o povo ficou muito assustado. Nossa Senhora é como uma protetora da vida. Ela trouxe Jesus ao mundo, então, neste sentido, ela também defende a vida. Nossa Senhora é uma só, e recebe vários títulos. Nossa Senhora de Guadalupe fez muitas revelações, e era uma forma de revelar que a vida vence a morte. Por isso é que, na imagem, estão as três crianças e o bebê que iria nascer, pintado nas mãos dela. É para dizer assim: “Vocês mataram a pessoa, mas não a vida em si” — explicou. Maria Hilda Mazieiro, de 73 anos, é devota de Nossa Senhora dos Mártires. Uma das coordenadoras da comunidade religiosa, ela disse já ter tido pedidos atendidos pela santa. — Meu filho é rodoviário e estava desempregado. Pedi a intercessão dela. Um amigo o encontrou e pagou uma dívida de que ele nem se lembrava mais. E, em seguida, o trabalho apareceu. Tenho certeza de que meu filho recebeu a graça por intercessão de Nossa Senhora — afirmou. Passados 37 anos da chacina, o bairro também mudou. A violência ainda assusta, mas não tanto, e há um destacamento da Polícia Militar instalado na entrada do Jardim Amapá. As ruas estão asfaltadas, há um posto de saúde e até uma ciclovia. São duas igrejas na comunidade. A outra é a de Santa Rita, erguida bem antes do templo de Nossa Senhora dos Mártires. A igreja mais recente conta com um anexo onde existe uma espécie de um memorial. No local, há imagem das três irmãs, folhetos com a história da chacina e uma foto da roseira, que secou pouco depois de ser encontrada. O quarto de terra batida onde o crime aconteceu está intacto. O templo tem ainda um centro cultural, batizado com o nome do falecido Dom Mauro Morelli, ex-bispo da Diocese de Duque de Caxias. O religioso ajudou na construção da igreja, que hoje apresenta sinais de que necessita de alguns reparos. — É uma estrutura que já ficou antiga. No passado recebia ajuda externa, mas hoje não mais — disse o padre Renato Gentile.