Para o mundo literário, a revolução da inteligência artificial deixou de ser uma novidade. Em 2025, a escrita foi afetada diretamente pelos modelos de linguagem avançada, que agora ocupam o centro do debate sobre criação, originalidade e autoria. Mais do que ferramentas de apoio e edição, eles recentemente passaram a ser capazes de criar “textos literários” cada vez mais sofisticados, como mostramos nesta segunda reportagem de uma série sobre as mudanças que a IA já fez e ainda pode fazer na produção artística contemporânea. Quer saber como é ser famoso? Apps simulam rotina de celebridade nas redes e usuário pode até ser 'cancelado' Giuliano Da Empoli: Cientista político alerta para aliança entre big techs e políticos extremistas em novo livro Agora, basta dar o comando (ou “prompt”) a uma ferramenta como ChatGPT, Gemini e Deepseek para que a máquina crie, em poucos segundos, um conto, um poema, um ensaio ou o esboço de um romance. Com a instrução adequada, ela pode até reproduzir, em qualquer idioma, o estilo de grandes autores, de Machado de Assis a James Joyce. É uma operação semelhante à que já se faz com imagens, como esta aqui ao lado, gerada a partir do prompt que reproduzimos no fundo desta página. Esse novo cenário também trouxe novos questionamentos éticos. Um texto produzido a partir de um prompt pode ser considerado original? Onde termina a ferramenta e começa a autoria? Quem deve ser recompensado quando esses sistemas são treinados a partir de obras protegidas por direitos autorais? Em 2025, essas questões deixaram de ser abstrações para se tornarem dilemas concretos, debatidos em contratos editoriais, salas de aula e nos tribunais. Enquanto isso, diversos livros produzidos (assumidamente ou não) com auxílio de IA foram catalogados este ano em sites como Goodreads, uma rede social de livros em que usuários avaliam e resenham obras. Usuários fizeram listas só com possíveis obras do gênero, onde aparecem autores com mais de 50 títulos publicados apenas em 2025. A quatro mãos com a IA? Em julho, a Editora Kotter se viu obrigada a cancelar a edição de 2025 de seu concurso de literatura, filosofia e política, tamanha a quantidade do uso de IA nas obras recebidas. Segundo a editora, 40 textos apresentaram sinais óbvios do uso de IA, enquanto 60 mostraram “fortes indícios”. — A IA no mercado editorial não deixa de ser um paradoxo — diz Bernardo Bueno, coordenador do curso de Escrita Criativa na PUCRS. — Ao mesmo tempo que temos uma ferramenta que pode ser usada para criar um texto teoricamente sem autoria, temos também um reforço da autoria, porque uma obra literária ainda depende muito do nome associado a ela. Compramos o livro de um autor porque queremos saber o que ele tem a nos dizer. Será que as pessoas vão se acostumar a comprar livros feitos por robôs? Diante da popularização dos modelos de linguagem, os escritores debatem agora o uso ético e sustentável dessas ferramentas. Até que ponto um escritor pode recorrer à inteligência artificial? Especialistas costumam distinguir entre ferramentas usadas para auxiliar o trabalho com o texto, como revisão, organização de informações ou apoio à etapa de ideação, e os sistemas de IA generativa propriamente ditos, capazes de produzir um texto novo do zero. De acordo com Bueno, é sobretudo nesse segundo caso que aparecem os maiores impasses. Ele lembra que, até há pouco, a IA era tratada como curiosidade ou uma técnica no curso de escrita criativa. Mas, na primeira aula do segundo semestre de 2023, os alunos já estavam trazendo suas angústias sobre o desenvolvimento recente das IAs generativas. — Será que vamos conseguir trabalhar a quatro mãos com a IA? Ou teremos também uma perspectiva mais artesanal da escrita, entendida como algo feito à mão, no sentido de feito por uma única pessoa, um ser humano? Eu, particularmente, acredito que vamos conviver com diferentes modelos. Chamo isso de “teoria dos três instantes”. Se entrarmos hoje em uma livraria, já é possível perceber passado, presente e futuro coexistindo — diz Bueno. “Interregno” Professor de Literatura na Universidade de São Paulo, Philippe Willemart é um dos intelectuais que vêm se dedicando a pensar as relações entre escrita literária e a IA. Neste semestre, ele lançou “A escritura e a arte na era da inteligência artificial”, livro em que reflete sobre os limites da escrita automatizada. Usando suas pesquisas na Crítica Genética, campo que analisa manuscritos e rascunhos para desvendar a formação da escritura de um autor, ele defende a singularidade do processo criativo humano frente ao avanço dos modelos de linguagem. Willemart lembra que a escritura vai além do ato de redigir textos: é um processo biológico e neurológico que envolve sentidos (visuais, sonoros e olfativos) e sentimentos bem humanos, aos quais a IA não tem acesso. Há ainda o “tempo de maturação” da escritura, com seus rascunhos, mudanças de rotas e achados acidentais que aparecem no meio do caminho — o que o pesquisador chama de “imponderável”. — A resposta quase instantânea dos modelos de linguagem comprova sua capacidade incrível de calcular os dados necessários para responder ao prompt, mas não tendo vivido o que (o escritor francês) Pascal Quignard chama de “interregno”, isto é, o tempo de vida situado entre a concepção e a apropriação da fala que todos tivemos, ele desconhece a fonte de vida psíquica que reúne sentimentos e fontes do desejo — explica Willemart. Acostumado a experimentações narrativas com ferramentas tecnológicas, o escritor Leonardo Villa-Forte concorda que o trabalho literário com esmero toma distância da padronizada automática. Ou, em alguns casos, brinca com ele. Em um de seus contos publicados este ano na “Antologia latino-americana de literatura eletrônica”, foi criado a partir de diálogos com chatbots de empresas comerciais. — Se delegarmos uma boa parte de nossas tarefas de leitura e escrita à IA, o mais provável é que cada vez nos tornemos menos capazes de gerar alguma coisa que produza diferença, que provoque um ruído produtivo, criativo, de uma inquietude explosiva ou bela, enfim, algo artístico, já que estaremos automatizando o processo e nos alienando da musculação necessária ao treinamento da escrita e ao desenvolvimento do imaginário — diz Villa-Forte. A popularização dos modelos de linguagem também traz polêmicas econômicas e jurídicas. Nos textos produzidos por sistemas de IA, é muitas vezes impossível saber quem de fato criou o texto e se os autores e artistas cujas obras alimentaram esses sistemas estão sendo remunerados. Processos judiciais revelaram este ano que algumas empresas de IA coletaram obras de autores baixando milhões de cópias digitais piratas de livros. Ou seja, seus escritos foram usados para treinar máquinas sem que eles soubessem. O escritor Sérgio Rodrigues Roberto Moreyra Literatura orgânica Em julho, o autor best-seller David Baldacci prestou depoimento no Congresso americano durante uma audiência sobre direitos autorais e inteligência artificial. Ele relatou que viu seu próprio filho pedir ao ChatGPT para criar uma trama “no estilo de David Baldacci”. “Tudo em que trabalhei a vida toda agora pode estar em posse de outra pessoa que sequer conheço e pode ser usado para escrever os livros errados que são, na verdade, meus livros”, disse Baldacci, que está entre os 17 escritores que processam a OpenAI e a Microsoft por uso indevido de suas obras. Autor de “Escrever é humano — Como dar vida à sua escrita em tempos de robôs”, um dos livros de 2025 que trataram da angústia tecnológica no mundo literário, o escritor e jornalista Sérgio Rodrigues lembra que os escritores são “a parte mais fraca” nas negociações pela regulação da IA. Ainda assim, diz ele, será preciso encontrar formas de corrigir as atuais violações criativas. O que não significa, contudo, que será possível conter o avanço da IA, que veio para ficar. — No futuro teremos a literatura orgânica, aquela em que uma pessoa escolhe palavras uma por uma, e o texto com ambições artísticas produzido com aditivos robóticos, um simulacro cada vez bem-feito — prevê Rodrigues. — Este vai se diferenciar progressivamente da literatura como a conhecemos, a ponto de merecer outro nome. A literatura orgânica vai ficar restrita a um nicho cada vez menor, mas não vai desaparecer. Talvez até tenha seu valor aumentado para os poucos que continuarem a cultivá-la. Só ela me interessa.