Kyra Gracie, herdeira de um dos sobrenomes mais tradicionais do esporte brasileiro, construiu uma trajetória que vai além das conquistas no jiu-jitsu. Aos 40 anos, a multicampeã entende que seu legado não se resume a medalhas e pódios, mas se reflete principalmente na forma como abriu caminhos para outras mulheres em um ambiente historicamente masculino. Casada com o ator Malvino Salvador e mãe de três filhos — Ayra, Kyara e Rayan —, ela hoje articula educação, maternidade e ativismo em torno de um mesmo objetivo: o fortalecimento feminino. Confira: Malvino Salvador revela como o esporte transformou sua vida e a visão sobre empoderamento Entrevista: André Luiz Frambach fala sobre 20 anos de carreira e construção de personagens multifacetados A consciência de que seu papel extrapolava as vitórias foi construída ao longo da carreira. "No início, eu só tinha o foco em competir e me provar em um espaço que não foi pensado para mulheres. Mas, ao longo do caminho, percebi que cada vez que eu subia no pódio, outras mulheres se sentiam autorizadas a entrar no tatame", afirma ao GLOBO. O impacto desse movimento ficou mais evidente quando Kyra passou a ouvir relatos de mulheres que mudaram postura, autoestima e decisões de vida a partir do contato com o jiu-jitsu. "Quando comecei a ouvir histórias de mulheres que mudaram sua postura, sua autoestima, autoconfiança e até suas decisões de vida por causa do jiu-jitsu, entendi que meu papel era maior do que títulos", diz. Hoje, ela resume essa virada: "Vencer campeonatos foi importante, mas a minha maior vitória foi usar a ferramenta do Jiu-Jitsu para levar autoconfiança para mulheres que buscam ter coragem para viver da forma que quiserem. Por isso meu foco hoje não é nos campeonatos e sim nas medalhas de ouro na vida." Kyra Gracie fala sobre defesa pessoal, maternidade e educação emocional para mulheres Divulgação Nanda Araújo A mudança de perspectiva também transformou a relação de Kyra com o próprio corpo e com a ideia de força. Se antes o foco estava na performance, o olhar agora é mais amplo e sustentável. "Antes, força era performance, resultado, resistência física. Agora, força é longevidade, consciência corporal, presença, equilíbrio emocional e autoconfiança", explica. O corpo deixou de ser apenas um instrumento de alta exigência para se tornar um espaço de cuidado: "Continuo forte, mas de um jeito mais inteligente, mais sustentável e muito mais forte na mente do que no corpo, e isso também é maturidade." É a partir dessa visão que Kyra desenvolve o jiu-jitsu educacional, especialmente voltado para crianças. Mais do que ensinar técnicas, o objetivo é transmitir valores essenciais. "Autoconfiança, respeito e responsabilidade", resume. O aprendizado inclui o direito de se posicionar e ocupar espaços. "Para meninas, é inegociável que elas aprendam a se posicionar, a falar com firmeza e a entender que não precisam pedir desculpa por existir e que podem ocupar qualquer papel que desejarem", destaca. A atleta reforça que o ensino é apenas o caminho: "A metodologia de ensino é o meio; o objetivo é formar seres humanos mais seguros e conscientes. Mulheres corajosas e seguras de si." Kyra Gracie em foto com a família Reprodução Instagram Nas redes sociais, Kyra e Malvino falam abertamente sobre defesa pessoal feminina, sem romantizar a violência. O equilíbrio entre alerta e fortalecimento emocional, segundo ela, está na informação. "A chave é a antecipação e a informação. Medo paralisa, conhecimento empodera. Nós não falamos de violência para assustar, falamos para preparar", esclarece a palestrante. Compreender sinais, contextos e possibilidades de reação amplia a autonomia feminina. "A mensagem não é 'o mundo é perigoso', mas 'você pode se posicionar melhor nele'. Autoconfiança nasce da consciência, não da negação", pontua Kyra. A maternidade atravessa sua vida profissional de forma direta e sempre foi um sonho. "A maternidade ampliou tudo e sempre foi um grande sonho para mim. Minha sensibilidade, minha responsabilidade e meu senso de propósito", conta. Se antes as decisões estavam centradas apenas na lutadora, esse foco se ampliou para um olhar coletivo. "Como atleta, eu era o centro das minhas decisões e tudo mudou com a maternidade", revela. O exemplo pessoal ganhou ainda mais peso: "Passei a entender que meu exemplo fala mais alto do que qualquer discurso." Atualmente, as escolhas da empresária são guiadas por uma pergunta constante: "Que tipo de mundo estou ajudando a construir para meus filhos?." Kyra Gracie em foto com a família Reprodução Instagram Essa preocupação desde cedo também aparece no livro "Um golpe contra o bullying". Na visão de Kyra, tratar do tema precocemente é uma forma de prevenção. "Porque o bullying não começa com a violência física, começa na palavra, no olhar, na exclusão", diz. Ensinar crianças a reconhecer emoções, se posicionar e pedir ajuda é fundamental para evitar traumas futuros: "Falar cedo é cuidar cedo. É mostrar que sentimentos importam e que ninguém precisa sofrer em silêncio". A criadora de conteúdo reforça que a educação emocional é um dos pilares de sua atuação. "Educação emocional é uma das formas mais eficazes de prevenção. Formar crianças mais seguras e autoconfiantes é o principal objetivo da minha metodologia de ensino do jiu-jitsu educacional", detalha. Kyra Gracie fala sobre defesa pessoal, maternidade e educação emocional para mulheres Divulgação Nanda Araújo Para Kyra, o maior desafio ainda é romper rótulos que limitam o comportamento feminino. "Precisamos parar de rotular comportamentos. Meninas não precisam escolher entre ser fortes ou sensíveis. Elas podem ser as duas coisas. Coragem não anula delicadeza, e delicadeza não diminui força", defende. Essa mudança, afirma, passa pela família, pela escola, pelo esporte e pela forma como a sociedade valida diferentes expressões do feminino. "Quando mostramos exemplos reais, humanos e possíveis, abrimos espaço para que meninas cresçam inteiras — não fragmentadas por expectativas externas". E conclui: "Mulheres autoconfiantes podem ser o que quiserem sem se preocupar com julgamentos."