Recentemente, andando pelo Museu do Louvre, em Paris, me deparei com algo que não estava exatamente nas pinturas, mas no que faltava nelas. Ou melhor: no que aparecia apenas pela metade. Estava numa visita guiada à exposição “De todas as belezas”, uma curadoria sobre representações do belo ao longo da História da Arte a partir do acervo do museu, quando a guia, uma francesa apaixonada pelo Brasil chamada Ana, dessas que conseguem fazer a gente enxergar camadas que antes estariam invisíveis, nos contou que, por muito tempo, mulheres não podiam sorrir nas pinturas e nas fotografias. Não é que elas não quisessem. É que não lhes era permitido. E isso me atravessou com força. Ela explicou que havia, sim, uma questão de saúde bucal. Afinal, antes da popularização de cuidados básicos, saneamento e tratamentos dentários, muitas mulheres, mesmo as das elites financeiras, tinham dentes comprometidos. Mas havia algo maior, mais profundo e mais conhecido por nós: a impossibilidade de expressar-se plenamente. O sorriso, para mulheres, era considerado demasiado espontâneo, demasiado livre, demasiado vivo. E essa liberdade assustava certas estruturas de poder. Então, ao posar, mesmo pertencendo a elites, mesmo envoltas em tecidos nobres, mesmo adornadas com joias, aquelas mulheres tinham que conter a boca. Literalmente. De repente, a Mona Lisa, que já tinha visto de perto outras vezes, inclusive replicada na internet, em camisetas, memes e lembranças de viagem, ganhou outro significado. Aquele meio sorriso quase enigma, presente em tantas figuras femininas naquele espaço. Talvez tivesse menos a ver com mistério e mais com imposição. Um sorriso permitido pela metade. Uma expressão também ladeada pela vigilância do tempo, da moral, dos códigos sociais. E aí comecei a pensar na quantidade de vezes em que, ainda hoje, sorrimos pela metade. Não porque queremos, mas porque as circunstâncias nos atravessam. Porque a vida cobra mais do que devolve. Porque as pressões acumulam nos ombros. Porque ainda somos ensinadas a sermos contidas, elegantes e moderadas para não corrermos riscos de sermos vistas como “menos profissionais”. Mas, ao mesmo tempo, percebi também que o sorriso é uma conquista. Sim, sorrir é uma conquista histórica, social, emocional, estética e política. Sorrir é ter um pedaço de autonomia e exercer o direito à autoexpressão. É reconhecer que, apesar das opressões terem mudado de forma, seguimos encontrando brechas para iluminar o rosto. E, veja só, sorrir também é autocuidado. Porque cuidar da saúde física e mental, inclusive da bucal, nos permite expressar mais livremente aquilo que sentimos. Há uma cadeia inteira de bem-estar que se constrói quando a gente pode existir sem medo de mostrar os dentes ou sem medo de não mostrá-los. O direito de sorrir inclui também o direito de não sorrir quando não queremos. Que a gente siga em 2026 lutando pelo direito de sorrir com o rosto inteiro. E com a vida inteira. Que a gente siga abrindo espaço para expressões que antes nos foram negadas. Que sigamos conquistando novos degraus na construção da nossa própria história. E que, quando sorrirmos, a gente lembre: não é só alegria. É resistência, herança, vitória individual e coletiva.