O que, na sua vida, começou e parou, sem jamais chegar ao seu fim? Entenda

Neste fim de ano, o livro que mais me fez pensar não foi um tratado filosófico, nem um romance-tijolo daqueles que arrogam profundidade pela quantidade de páginas. Foi uma obra quase muda, que só existe no espaço entre o que é mostrado e o que é escondido. “Solution de continuité” (“Solução de continuidade”, ainda sem tradução no Brasil), escrito pela jovem atriz francesa Nine d’Urso, parece primeiro um caderno de artista tímida; depois, um jogo adolescente; e, por fim, um espelho honesto, sucinto, implacável. O objeto em si já dá o tom: as páginas vêm coladas, e junto com o livro recebemos uma pequena faca para cortá-las naquele gesto antigo, íntimo, quase cerimonial. Só depois de abrir esse ventre de papel é que descobrimos as respostas que a autora colheu. Elas não são longas nem discursivas. São murmúrios. Pequenas confissões transformadas em desenhos assinados pela autora. Nine fez a 300 pessoas — muitas delas famosas, mas cujos nomes jamais revelará — a seguinte pergunta: “O que, na sua vida, começou e parou, sem jamais chegar ao seu fim?” Terrível interrogação que vê o desencanto transformar-se em arrependimentos e, às vezes, em remorsos, abrindo uma represa de memórias e sentimentos. Porque todos nós carregamos esse lugar do inacabado, daquilo que abandonamos por preguiça, medo, excesso de ambição ou simples desinteresse. E, no entanto, Nine nos convida a olhar para esses restos com mais ternura do que vergonha. A autora é hoje uma das jovens atrizes em ascensão na França. Recentemente, interpretou a escritora George Sand numa série da TV francesa, com grande sucesso de crítica e público. Filha da ex-modelo e empresária Inès de la Fressange e do aristocrata italiano Luigi d’Urso, cresceu num ambiente em que se falava menos de moda e frufrus do que o imaginário coletivo supõe. Vi-a crescer, ao lado da irmã Violette, convivendo e conversando com poetas, jornalistas, pensadores. Uma vez fui almoçar em sua casa, e à mesa, para minha surpresa inesquecível, estava Yves Coppens, o homem que descobriu o fóssil de 3,2 milhões de anos da Lucy, uma fêmea de hominídeo Australopithecus que reescreveu a história da evolução da espécie humana. Nada era previsível nesse laboratório familiar de curiosidades, onde ela começou a transformar compulsivamente aquilo que observava e absorvia em desenhos. Os do livro, por exemplo, foram feitos nos intervalos dos sets de filmagem de George Sand. O gesto que obriga o leitor a cortar as páginas para descobrir as respostas é simbólico: para enxergar o que importa, é preciso romper a superfície. As respostas — arrependimentos, fracassos, promessas esquecidas, segredos guardados — poderiam ser pesadas, mas ficam até poéticas, irônicas e divertidas. Porque é patética, quase ridícula, nossa capacidade de autoengano sobre poder controlar tudo, inclusive nossas resoluções. A ideia de “terminar o que se começou” virou quase uma lei moral. Mas será mesmo tão grave desistir? E se o que nos define não for o que concluímos, mas o que continuamos carregando? Há projetos que não se fecham nunca, relações que se desfazem e seguem nos moldando, promessas que viram perguntas. Talvez a vida seja mais essa fratura que se reorganiza, como o termo médico que dá título ao livro. Na radiologia, uma “solução de continuidade” é o nome dado àquela linha negra que aparece quando há uma fratura: um corte entre duas estruturas que antes eram contínuas. Uma interrupção, sim, mas também o início de uma reconstrução. Uma pausa que prepara o terreno para o renascimento. Há uma honestidade libertadora em aceitar o inacabado. Talvez terminar seja um mito que contamos a nós mesmos. Como este ano, que, no dia 31 fingirá chegar ao fim, para que outro, no dia 1º, possa fingir que começou. O tempo, afinal, é um só. A solução que nos permite continuar é a esperança. Brindemos a ela.