Foi o teatro que inventou a palavra “robô”. Em 1920, o autor tcheco Karel Capek cunhou o termo “roboti” — derivado de “robota”, “trabalho forçado” no idioma eslavo — para designar um elemento central na peça “RUR: Robôs Universais de Rossum”. Na narrativa distópica, humanos artificiais substituem toda e qualquer mão de obra e assumem a função de trabalhadores domésticos, operários, soldados... Ao se conscientizarem da condição de escravizados, concluem que humanos precisam ser exterminados. E fazem uma revolução. IA no audiovisual: ferramentas podem abaixar custos e acelerar processos, mas aplicação ainda gera debates IA na música: 'hits sintéticos' e acordos de seus criadores com gravadoras geram polêmica Um século depois, a ficção científica parece descortinar uma história parecidíssima nos teatros. Nesta quarta reportagem da série sobre o impacto da IA na produção artística, mostramos que a tecnologia, em suas diversas formas de “roboti”, já realiza, em coxias e palcos, atividades antes consideradas intransferíveis para máquinas — como é o caso da ilustração ao lado, gerada por um prompt de IA. Os exemplos podem ainda ser incipientes, mas uma insurreição já começa a ocorrer nas bocas de cena. “Comunicamos com o digital como quem canta para espíritos — não para dominá-los, mas para coexistir com suas forças”, diz um dos princípios do “Manifesto Tecnofágico”, publicado este ano pela companhia paulistana Os Satyros. Inspirado em Oswald de Andrade (1890-1954), o documento norteia “formas de resistência que nos fazem dançar com as máquinas”. A ideia é devorar as novas tecnologias para regurgitá-las, com força total, em outros contornos, linguagens e experimentações. É o caso de “Peça para salvar o mundo”, que estreou este ano, em São Paulo, como uma das primeiras montagens no mundo sem atores em cena (e com aposta máxima na inteligência artificial). A trama apresenta uma criatura que se transmuta em diferentes personas — avatares num telão — em busca de informações da plateia para livrar a Humanidade da autodestruição. Com o corpo tomado por sensores e escondida do público, a atriz Mariana Leme impulsiona movimentos, falas e intenções do “personagem-ciborgue”. Eis a prova de que dá para criar “possibilidades humanas” a partir da IA, como frisa o dramaturgo Ivam Cabral. Mesmo assim, ele reforça, o trabalho do ator, em carne e osso, permanece: — Há um novo paradigma à vista, algo que se abre para as novas gerações. Como arte da presença, o teatro se desafia com a redefinição da presença, que pode ser uma “tele-copresença”. Afinal, o que é estar presente? — indaga Ivam. — As tecnologias estão aí, prontas para serem exploradas e questionadas. Pensando no texto, há muita gente criando dramaturgias com o auxílio de ferramentas específicas para o gênero teatral, como as plataformas tcheca THEaiTRE e a chinesa Co-Opera — o grande barato, por ora, é escancarar o uso do recurso para escrutinar a tecnologia. Em Nova York, o grupo The Civilians propôs um experimento com ares de troça, há dois anos, na peça “Artificial flavors”. A partir de comandos da plateia, a IA cuspia histórias, com textos projetados numa tela. Na sequência, os atores os interpretavam. Thiago Mendonça encarna um robô que interage com os espectadores no espetáculo on-line 'Uma peça para salvar o mundo', do grupo Os Satyros Divulgação/Andre Stefano Com integrantes de Inglaterra, Canadá e EUA, entre outros países, o coletivo Improbotics segue caminho parecido: humoristas improvisam sobre “falas” de um chatbot, podendo blefar sobre o que, de fato, vem da máquina ou das mentes dos artistas. “Essa configuração oferece muitos potenciais para uma comédia”, justifica o coletivo. — Recusar a inteligência artificial é como rejeitar a eletricidade — atesta o diretor e historiador Gustavo Blaauw, fundador da GeeBee Theatrical, produtora voltada à intersecção entre teatro e tecnologia. — Agora, o desenvolvimento de novos recursos vem afinando processos. E algo novo surgirá daí. O teórico Philip Auslander afirma que o teatro clássico grego não era “ao vivo”, porque não existia o seu oposto: peças não podiam ser gravadas. Fico pensando o que virá a ser o oposto da inteligência artificial. Para encenadores, é impossível conter o avanço das ferramentas de IA nos palcos. Mas há quem sugira mais cautela na conexão entre artes e gadgets. — O teatro é forte a partir do encontro entre ator e espectador, e o que está no entorno de ambos deveria potencializar esse aspecto a partir da imaginação — analisa o diretor Rodrigo Portella, um dos expoentes da cena atual. — Usar muita tecnologia em cena pode criar ruídos no processo imaginativo. Da idealização de cenários ao uso de dispositivos para a medição da reação de espectadores, a IA já é capaz de produzir efeitos visuais como hologramas no palco, expandindo possibilidades narrativas e estéticas. Chamou a atenção na Broadway, este ano, o musical “Stranger things: the first shadow”. Inspirada na série homônima da Netflix, a montagem recebeu o prêmio especial do Tony Awards pelo apuro técnico com o qual criou efeitos visuais e de ilusão — vários deles feitos por meio de aparatos de IA. Em um trecho, uma personagem é elevada telecineticamente no ar, tendo os membros quebrados. — O que temos hoje é a ilusão de holografia, que existe desde o século XVIII. Estudos sobre esse assunto preenchem há muito tempo o teatro. Em espetáculos de fantasmagoria, também no século XVIII, usavam-se efeitos a partir de fumaça, e há registros de espectadores que se se jogavam no chão, com medo — detalha Gustavo Blaauw. — Mas para usar essas técnicas é preciso sempre cometer um ato dramatúrgico. Se a presença de um holograma numa peça não faz avançar a trama, para que colocar aquilo lá? É a mesma coisa que acender um foco de luz onde não precisa. Tem que ter um porquê. Caso contrário, vira um mero artifício.