O título “Sixties surreal” (“Surrealismo sessentista”) é uma redundância. Afinal, o que não foi surreal nos anos 1960? Essa é a primeira provocação dessa exposição fascinante e revisionista, em cartaz até 19 de janeiro no Whitney Museum of American Art, em Nova York. A mostra sustenta que muitos artistas da década compartilham uma devoção ao corpo humano e ao corpo político que merece ser reconhecido como um novo movimento na história da arte: o Surrealismo Sessentista. Marlene Almeida: Presente na 36ª Bienal de SP e com individual no Rio, artista mantém pesquisa de cinco décadas com pigmentos dos solos brasileiros Das ruas para as galerias: Com murais por todo o mundo, Kobra investe em telas e prepara mostra retrospectiva para 2027 A exposição conduz o visitante por parte desse vasto território, mas também o deixa à própria sorte interpretativa, gerando às vezes a sensação de abandono, outras vezes um estado de excitação. A curadoria aposta em obras de impacto que desafiam a indiferença: o balde de vísceras fotorrealistas de Paul Thek; o nó orgulhosamente ereto que H.C. Westermann lixou a partir de camadas de compensado naval; a tela em cores Day-Glo de Peter Saul, com soldados caricaturais dos EUA agredindo civis no Vietnã. Com essas e outras 150 obras, os quatro curadores (todos do Whitney) defendem que o verdadeiro aspecto da arte dos anos 1960 não foi o pop elegante nem o minimalismo, mas um retorno ao surrealismo clássico, o movimento europeu dos anos 1920 que incentivava o grotesco como forma de lidar com pensamentos intrusivos que a sociedade existe para reprimir. A seção “Body Ego” declara o tema em alto volume. Uma plataforma de obras ondulantes, semelhantes a restos orgânicos — uma poltrona de pústulas brancas infladas, de Yayoi Kusama; algo como uma epiglote de gesso suspensa, de Louise Bourgeois; uma das telas de Lee Bontecou, com orifícios abertos e suturados — revela com franqueza um certo desconforto inquieto com a vida interior. O lustre de filamentos de náilon de Kay Sekimachi poderia ser um refinado Ruth Asawa, não fosse o fato de estar todo arrebentado na metade inferior, como se voltasse de um fim de semana de excessos para pentear o cabelo. O ovo de cerâmica de Ken Price é tão sensual quanto uma obra de Barbara Hepworth, exceto pelo verde-rádio e pela sensação de que algo está prestes a nascer. Visitantes na galeria "The Big Rip-Up", na exposiçãono Whitney Museum Janice Chung/The New York Times Esses contrastes implícitos são, creio, o ponto central. Eles sugerem que os chamados surrealistas dos anos 1960 não eram apenas uma contracultura, mas uma contra-contracultura. Encarnam um suspiro de colapso coletivo depois que a arte moderna se estreitou, por cerca de 50 anos, em uma atividade excessivamente preocupada com frieza, elegância ou cinismo. Variedade indisciplinada A verdade é que arte dos anos 1960 era tão indisciplinada, tão variada, que nenhuma mostra, por mais revisionista que seja, pode fazer plena justiça a ela. Vinda de curadores tão competentes, até as falhas inevitáveis ensinam. Como o foco quase exclusivo em artistas com ambições de galeria. Isso significa que quase não vemos nada do universo faça-você-mesmo de zines, panfletos, cartazes e bottons que mais do que qualquer exposição ajudaram a afastar o americano médio de padrões materiais de sucesso e a reconduzi-lo ao seu animal interior. A ausência é sentida. A organização temática também impõe uma forma de ver baseada em assuntos que nem sempre recompensa a sutileza visual das melhores obras. O maior presente é o vislumbre do corpo político, de um inconsciente coletivo que, desde a Segunda Guerra Mundial, ameaçava romper a camada de verniz americano. Na seção dedicada à sociedade e à mídia, um trio de fotografias muito bem escolhido revela, com a clareza de um capítulo de Marshall McLuhan, os diferentes campos de experiência que a televisão começava a fundir, à medida que a primeira geração de telespectadores do país chegava à vida adulta. As imagens são: uma foto de Diane Arbus de Bela Lugosi como Drácula, captada da TV; outra Arbus, de uma tela de drive-in, exibindo nuvens artificiais contra o céu noturno; e, por fim, uma imagem de Shawn Walker da vitrine da Tiffany’s enquadrada pela própria fachada — uma tela em si. No século do smartphone, o quão profético parece esse pequeno trio de imagens. É uma das muitas razões para ver a exposição. Como os adolescentes intrometidos de Scooby-Doo, seus curadores nos fazem o favor — ainda que às vezes exagerem — de insistir nas realidades humanas por trás de todos os fantasmas do colapso deste país.