Ex-embaixador dos EUA diz que Trump descartou Bolsonaro após vê-lo como 'perdedor'

O recuo dos Estados Unidos em medidas duras adotadas contra o Brasil, como a imposição de tarifas comerciais e a inclusão de autoridades do Judiciário brasileiro na lista de sanções da Lei Magnitsky, teve menos a ver com uma virada estratégica em Washington ou com ganhos diplomáticos do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e mais com o perfil imprevisível de Donald Trump e sua mudança de percepção sobre o ex-presidente Jair Bolsonaro. A avaliação é do ex-embaixador americano John Feeley, um dos principais especialistas em América Latina do Departamento de Estado nas últimas décadas. Em entrevista à BBC News Brasil, Feeley afirmou que Trump abandonou Bolsonaro assim que o ex-presidente brasileiro deixou de ser politicamente útil. Master: Acareação de Toffoli ajuda plano da defesa para desmontar investigação de fraude Datafolha: PT é o partido preferido de 24% dos brasileiros; PL é o segundo, com 12% — Assim que Bolsonaro perdeu, ou seja, assim que foi condenado e preso, Donald Trump o viu como um perdedor, e se há algo que Donald Trump não tolera são perdedores — disse Feeley, que deixou o governo americano em 2018, durante o primeiro mandato de Trump, por discordar de suas decisões. Para o ex-embaixador, Trump nunca demonstrou interesse real pelo Brasil ou por Bolsonaro. A aproximação entre os dois teria sido circunstancial, baseada em uma sobreposição momentânea de discursos conservadores explorados de forma cínica pelo então presidente americano junto à sua base eleitoral. Com a derrota e a condenação de Bolsonaro, o vínculo perdeu valor político. — Não acho que Donald Trump saiba muito sobre Bolsonaro. Posso quase garantir que ele não acorda todos os dias pensando no Brasil. E assim que Bolsonaro deixou de ser uma referência na política brasileira e o Estado de Direito e a justiça democrática prevaleceram no Brasil, Donald Trump simplesmente o descartou. Feeley também avalia que a política externa de Trump é marcada por impulsividade, personalismo e ausência de estratégia clara, o que torna qualquer negociação instável. Nesse contexto, o desfecho recente da crise entre Brasil e Estados Unidos teria sido mais fruto do acaso do que de habilidade diplomática. — Acho que Lula, francamente, teve sorte. E eu encorajaria tanto Lula quanto praticamente qualquer líder a se manterem fora da órbita de Trump, na medida do possível — afirmou. As tensões entre os dois países se intensificaram em julho, quando Washington anunciou tarifas de 40% sobre produtos agrícolas brasileiros e incluiu o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e sua esposa na lista de sancionados pela Lei Magnitsky. As medidas ocorreram em meio a pressões do governo Trump para interferir no julgamento de Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado. Em novembro, porém, o presidente americano suspendeu as tarifas e, semanas depois, retirou Moraes e sua mulher da lista de sancionados. Na visão de Feeley, a reação inicial de Washington ao caso Bolsonaro foi influenciada diretamente pelo lobby do deputado Eduardo Bolsonaro nos Estados Unidos. Trump, segundo ele, é altamente suscetível à pressão de lobistas e assessores com acesso ao entorno do poder em Washington, o que explicaria decisões abruptas e contraditórias nos últimos meses. Além do Brasil, o ex-embaixador comentou a escalada de tensões entre Estados Unidos e Venezuela, após o anúncio de um bloqueio total a navios petroleiros sancionados que entrem ou saiam do país governado por Nicolás Maduro. Para Feeley, a medida é mais eficaz para atingir o regime venezuelano do que ações anteriores, embora gere efeitos colaterais sobre a população. Ele ressalta, no entanto, que a crise humanitária da Venezuela não pode ser atribuída principalmente às sanções internacionais, mas sim ao modelo econômico adotado pelo governo venezuelano ao longo das últimas duas décadas. Segundo o diplomata, é esse fracasso que explica o êxodo de milhões de venezuelanos e a deterioração das condições de vida no país. Apesar do aumento da retórica e das demonstrações de força, Feeley considera improvável uma invasão terrestre americana na Venezuela. Para ele, Trump tende a evitar um conflito de grandes proporções que possa comprometer os interesses eleitorais do Partido Republicano. Uma escalada militar mais ampla, afirma, teria consequências negativas para toda a América do Sul e reavivaria um histórico de intervenções americanas que alimentaram o antiamericanismo na região. — Então, acho que pode haver alguns ataques com mísseis sem arriscar vidas ou recursos dos EUA. E depois dessa demonstração performática de poder americano, acredito que não haverá uma invasão terrestre com tropas americanas — acrescentou. Nesse cenário, o Brasil poderia desempenhar um papel indireto, não como mediador entre Washington e Caracas, mas como exemplo institucional. Feeley afirma que a resposta brasileira aos ataques à democracia, como os atos golpistas de 8 de janeiro, mostra um compromisso com os limites constitucionais do Poder Executivo que poderia servir de referência ao público americano. — O Brasil ainda tem um papel importante a desempenhar, pois o país passou por uma experiência recente muito semelhante à dos Estados Unidos. É uma democracia grande e muito diversa, com um sistema democrático complexo, como é próprio de todas as democracias, que foi testada em 8 de janeiro de maneira muito parecida com a que a democracia americana foi testada em 6 de janeiro [...]. Espero que os Estados Unidos possam se inspirar no exemplo do Brasil, que, a meu ver, tem sido muito mais receptivo aos limites democráticos do Poder Executivo do que os Estados Unidos, até o momento — afirmou.