“Não houve necessidade de usar essas armas… e espero que não seja necessário”, afirmou, no começo do ano, o presidente russo, Vladimir Putin, em mais uma tensa menção ao maior arsenal nuclear do planeta, que por mais de uma vez esteve sobre a mesa quando o assunto foi o conflito na Ucrânia. Mas, em 2025, Putin não foi o único a levantar a carta nuclear. Potências deram sinais de que poderão quebrar uma longa sequência de décadas sem testes, como os EUA, ou aceleraram o ritmo de modernização de seus arsenais, como a China, no momento em que um importante acordo de controle de armamentos nucleares está prestes a expirar, sem um substituto à vista. Minuteman III, Burevestnik ou Poseidon: Mais de 30 anos depois da Guerra Fria, EUA e Rússia ameaçam reacender corrida nuclear 'Mão Morta': Conheça 'Máquina do Juízo Final' que a Rússia usa como ameaça aos EUA Em sua última atualização, o chamado Relógio do Juízo Final, que traduz em um modelo de horário a proximidade de uma catástrofe nuclear, estava a 89 segundos da meia-noite, a menor distância já registrada desde seu lançamento, em 1947. A próxima atualização será feita no final de janeiro. — Oitenta anos após o início da Era Nuclear, estamos realmente em um ponto de inflexão — afirmou ao GLOBO Alexandra Bell, presidente do Boletim de Cientistas Atômicos, responsável pelo Relógio do Juízo Final. — As escolhas sendo feitas agora, e as que serão feitas nos próximos meses e anos, determinarão se continuaremos a gerenciar e reduzir as ameaças nucleares ou se as veremos aumentar, minando todo o bom trabalho realizado para reduzi-las desde meados da década de 1960. Arsenais nucleares no mundo Editoria de Arte Um protagonista desse momento de inflexão é a Rússia, detentora de 5.580 ogivas operacionais, armazenadas em arsenais ou que aguardam desmantelamento. Desde o início da invasão na Ucrânia, a Rússia mudou sua doutrina nuclear, permitindo seu uso para defesa territorial mesmo contra armas convencionais, colocou suas forças em prontidão e em mais de uma ocasião sugeriu que não hesitaria em usar suas bombas nucleares. Trump adverte Putin após teste de míssil: 'Temos o melhor submarino nuclear na costa deles' No ano passado, um míssil balístico com capacidade de levar ogivas foi lançado contra Dniéper, e os mísseis Kinjal, também aptos a ataques nucleares, são empregados com frequência contra cidades e posições militares ucranianas. Mesmo sem uma detonação — como nos ataques americanos contra Hiroshima e Nagasaki, em 1945 — Putin conseguiu o que queria ao apostar na retórica nuclear. — Essa foi uma circunstância em que vimos o uso da dissuasão nuclear, quando se ameaça recorrer à força nuclear se um curso de ação for tomado. Neste contexto, Putin foi bem-sucedido — apontou ao GLOBO Layla Dawood, professora de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). — Embora os países da Otan tenham conferido apoio à Ucrânia, o apoio direto, que entendemos como o envio de tropas, não aconteceu. Esse foi um resultado indireto da [dissuasão das] armas nucleares. ‘Armas do Armagedom’ Além do Kinjal e do míssil Oreshnik, usado contra Dniéper, Putin celebrou recentemente outras de suas chamadas “superarmas”, todas com capacidade nuclear e, segundo o Kremlin, impossíveis de serem interceptadas. Um drone submarino e um míssil de cruzeiro, testados em outubro, foram chamadas pelo escritor Mark Galeotti de “armas do Armagedom”, que são “poderosas demais para ser usadas, a menos que você esteja disposto a destruir o mundo”. Na mesma época em que o Kremlin anunciou seus testes, o presidente Donald Trump pediu ao Departamento de Defesa que “começasse a testar armas nucleares” em termos similares aos de outros países. Signatários do Tratado de Não Proliferação (NPT) e do Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (CTBT), os EUA não fazem uma detonação desde 1992. — Muitos pensaram que ele falava de testes de mísseis, de sistemas de lançamento. Mas ele mesmo trouxe a conversa de volta para testes de detonação, embora não tenhamos visto uma política concreta — diz Bell. — O problema reside na imprecisão com que abordou esses tema, no fato de a comunidade internacional, a mídia e o povo americano terem que adivinhar o que quis dizer. Isso é inaceitável vindo de uma das poucas pessoas no mundo com capacidade de usar armas nucleares. 'Domo de Ouro': Além dos EUA, veja outros países que já dominam a tecnologia de defesa antimíssil Se Trump e Putin parecem interessados em mostrar ao mundo suas novas armas — no caso de Trump, sua joia da coroa é o Domo de Ouro, um sistema de defesa aérea contra praticamente todos os tipos de mísseis, ainda em planejamento —, o mesmo não se pode dizer de acordos de controle de arsenais. O último ainda em vigor entre os dois países, o Novo Start, firmado em 2010, expira em fevereiro, sem um substituto à vista. A Rússia propôs uma extensão de um ano, mas os EUA ainda não responderam. O acordo limita o número de ogivas operacionais em 1.550, assim como os meios usados para seu uso, incluindo bombardeiros, mísseis intercontinentais e lançadores terrestres. Outro trecho determina que os dois lados poderão realizar inspeções mútuas, mas em 2023 Putin anunciou que não participaria mais do mecanismo, embora tenha se comprometido a seguir seus limites enquanto o texto estiver em vigor. — O acordo não buscava apenas diminuir, do ponto de vista numérico, os armamentos, mas criar canais de confiança entre as duas partes. E, sem esses acordos, o mundo fica menos seguro — explica Dawood. — E há algo a ser notado que é o incremento qualitativo dos arsenais. Os países podem manter os limites numéricos, mas a Rússia, por exemplo, ao criar mísseis hipersônicos, faz com que seja mais difícil se defender deles. Acordo com China? Em seu primeiro mandato, uma das obsessões de Trump nas conversas nucleares era incluir a China em um futuro acordo. O país tem o terceiro maior arsenal, com 600 ogivas, e um programa vigoroso de aperfeiçoamento militar, cercado de sigilo. Em setembro, Pequim exibiu alguns de seus mísseis balísticos na parada de 80 anos da vitória na Segunda Guerra, todos capazes de atingir os EUA. Segundo o Pentágono, o país deve chegar a mil ogivas até 2030, mas, por enquanto, ninguém dentro do Partido Comunista parece disposto a embarcar em um acordo trilateral com EUA e Rússia. — Precisamos encontrar uma maneira de levar Pequim à mesa de negociações, para deixar claro que a estabilidade estratégica é de seu interesse de segurança, que não tem carta branca para se esquivar simplesmente porque, no momento, possuem menos armas nucleares, e que não há asteriscos no NPT que permitam à China recorrer a essas medidas quando bem entender — afirma Bell. Imagem de satélite com antes e depois da instalação de Fordow após os ataques dos EUA AFP PHOTO/ SATELLITE IMAGE ©2025 MAXAR TECHNOLOGIES s riscos nucleares não vêm apenas de arsenais existentes. Em junho, ao final de uma guerra de 12 dias entre Israel e Irã, o governo Trump atacou instalações de enriquecimento de urânio em solo iraniano. A Casa Branca e os israelenses diziam que era uma ação para “obliterar” o programa atômico de Teerã, acusado de ter fins militares, o que o país nega. Na ocasião, a Agência Internacional de Energia Atômica apontou o risco de vazamento radioativo, mas sem condenar o bombardeio (o que enfureceu as autoridades iranianas). Após o ataque, ficou no ar o temor de que Teerã decidisse buscar suas próprias ogivas, e também um debate sobre o status de instalações nucleares em um contexto militar. Além do bombardeio deliberado no Irã, as usinas de Zaporíjia e, mais recentemente, Chernobyl, na Ucrânia, sofreram danos por drones e projéteis. — Já passou da hora de discutirmos (...) a legitimidade de atacar instalações nucleares, o perigo que isso representa, que vai além da destruição da própria instalação, mas também sobre o que poderia acontecer com a população ao seu redor — disse Bell. Em abril, ocorre uma conferência de revisão do NPT. Para Bell, embora os países signatários saibam que o texto não é o ideal, o momento é de trabalhar para aprimorá-lo e, mais importante, defendê-lo — É um tratado imperfeito, como todos os tratados são imperfeitos, mas é a melhor estrutura que temos agora para estabilizar as ameaças nucleares em todo o mundo — afirma. — Os 191 países que comparecerem a essa conferência devem se comprometer pública e veementemente com os princípios do TNP e aceitar que existem pontos com os quais não concordamos, os quais precisamos administrar de forma lenta, meticulosa, paciente, mas persistente.