IA nas artes visuais: de ferramenta no presente, tecnologia pode assumir coautoria de obras no futuro

Se o uso de inteligência artificial está longe de ser um tema pacificado no meio das artes visuais — haja vista a petição com mais de seis mil assinaturas contra um leilão da Christie’s dedicado exclusivamente a criações de IA, em fevereiro, pelo temor do uso não autorizado de obras no treinamento das máquinas —, o recurso já está amplamente inserido nos processos criativos e nos circuitos institucionais e de mercado. No início do mês, um dos grandes destaques da 23ª edição da Art Basel Miami Beach, a maior feira de arte das Américas, foi a seção Zero 10, dedicado à arte digital. Uma das obras mais fotografadas e instagramadas do evento foi “Regular animals”, na qual cachorros robóticos com a cabeça coberta por máscaras de silicone de artistas, como Pablo Picasso e Andy Warhol, e dos bilionários CEOs de big techs Elon Musk (X), Mark Zuckerberg (Meta) e Jeff Bezos (Amazon) circulavam num cercado, reagindo a comandos de IA. Seu criador, Mike Winkelmann, mais conhecido como Beeple, ganhou notoriedade ao ter vendido por US$ 69,3 milhões sua colagem digital “Everydays: the first 5,000 days”, pela Christie’s, em 2021. IA no teatro: ferramenta inspira criação de novas linguagens, mas sem deixar de lado a fisicalidade IA no audiovisual: ferramentas podem abaixar custos e acelerar processos, mas aplicação ainda gera debates Nos próximos anos, a tendência é que a IA se transforme numa ferramenta cada vez mais usada por profissionais do setor, mesmo os que não trabalham diretamente com arte digital, e, em alguns casos, seu uso se configure como um processo de coautoria, como observam entrevistados da série de reportagens produzida pelo GLOBO sobre os impactos da inteligência artificial na cultura, no presente e no futuro. Marlene Almeida: Presente na 36ª Bienal de SP e com individual no Rio, artista mantém pesquisa de cinco décadas com pigmentos dos solos brasileiros Na Art Basel Miami Beach, a seção dedicada à arte digital teve seu título inspirado na mostra “0,10: a última exposição futurista de pintura”, realizada em São Petersburgo em 1915, marco do suprematismo, quando Kazimir Malevich apresentou seu icônico “Quadrado negro sobre fundo branco”. Da mesma forma que a obra do artista ucraniano (na época, parte do Império Russo) simbolizava a abstração total e apontava para o futuro das artes visuais, a organização da feira vê a arte digital e criada com IA como outro ponto de virada no setor. — Veremos mais trabalhos digitalmente nativos entrando em todos os setores. Vai ser muito diferente em cada uma das feiras, o que mostramos aqui não será o mesmo que veremos na Art Basel Hong Kong (em março). Estou animada para ver como vai evoluir — disse Bridget Finn, diretora da feira de Miami, em entrevista ao GLOBO. Art Basel Miami Beach: instalação de Beeple transforma bilionários em cães mecânicos Um dos artistas a expor no setor foi o canadense baseado em Nova York Dmitri Cherniak, que apresentou trabalhos da série “Ringers”, inspirados em “Livro do tempo”, da brasileira Lygia Pape. Mostrada num grande painel digital, em impressões e numa escultura em aço inoxidável, a série parte das infinitas combinações de como passar uma corda por conjunto de pinos. Para ele, a aplicação da IA como ferramenta artística é comparável ao que fez no início do século XX o húngaro László Moholy-Nagy, um entusiasta do uso de tecnologias como a fotografia, o cinema e motores elétricos em esculturas cinéticas, além de novos materiais, como o Plexiglas. — Vemos hoje muitas pessoas que cresceram trabalhando com computadores e códigos, ferramentas usadas principalmente para fins econômicos ou políticos, utilizando-as para fins artísticos — comenta Cherniak. — É importante que artistas utilizem essas ferramentas, elas precisam ser usadas para criar arte. Gosto de dizer que a automação é o meu meio artístico. Ela afeta a todos nós diariamente, e eu tento usá-la não para economizar 5% em um produto, mas para criar algo poético e criativo. O artista canadense Dmitri Cherniak e obras da série 'Ringers' na Art Basel Miami Beach: inspiração em Lygia Pape Nelson Gobbi Criador da Meta Gallery, no Centro do Rio, voltada exclusivamente a vertentes da arte tecnológica, como realidade aumentada, obras generativas e criptoarte, Byron Mendes acredita que, ainda que já seja parte da produção atual, ainda há muito para ser explorado no uso da IA. — A IA hoje tem o papel de um assistente, ela acelera a pesquisa de imagem, testes de composição, criação de variações, simulacros de instalações. Ela é uma ferramenta, mas uma ferramenta que possui opinião. E que em muitos casos pode criar um processo de coautoria — observa Mendes. — A gente sempre tentou acelerar processos, basta pensar naqueles ateliês dos grandes mestres do Renascimento, com vários pupilos trabalhando junto. Isso levou a questões de autoria compartilhada debatidas até hoje, de obras atribuídas a um artista mas que podem ter sido executadas por um assistente. É algo que veremos com a IA, porque ela traz possibilidade que nem sempre estariam conscientes na cabeça do criador. Mas, claro, a curadoria e a responsabilidade pelo processo continuam sendo do artista. Preocupações com questões éticas Com a mostra “Microbiomas poéticos” em cartaz até março de 2026, a Meta Gallery apresentou, até outubro, a individual “Isto não é um prompt”, na qual o artista computacional Marlus Araujo mostrava obras generativas, com uma proposta de coautoria de interfaces de IA com o público. — O que temos de fazer agora é construir um ambiente ético para o desenvolvimento da IA. É preciso ser transparente no processo de criação artística, e ter uma regulação para que não haja apropriação sem consentimento. E geralmente nós somos mais lentos a dar essas respostas do que os avanços tecnológicos, basta ver que ainda não conseguimos uma legislação eficiente e adaptada para as criptofinanças, ou mesmo para regular as redes sociais — diz Byron Mendes. — E outro ponto importante é manter o protagonismo da curadoria humana, é ela quem engendra as escolhas. A IA não é um problema, mas o seu uso preguiçoso. Não se pode se limitar a replicar fórmulas. Coletiva 'Microbiomas Poéticos', em cartaz na Meta Gallery Divulgação/João Pequeno No ano que vem, a galeria passa a sediar a Escola Brasileira de Arte e Tecnologia (Ebat), projeto que também terá unidades em Salvador (BA), Recife (PE) e Porto Itapoá (SC), com uma proposta de cursos livres gratuitos de novas tecnologias e inteligência artificial, para a formação de jovens e a requalificação de profissionais da indústria criativa. — Vamos iniciar com palestras, oficinas e a formação educativa em março. A ideia é criar uma infraestrutura eficiente de inteligência artificial aqui no Brasil. Teremos a vinda dos data centers, entre outros investimentos, mas não se pensa na formação dos jovens, que têm que se preparar para a transição que vamos viver — explica Mendes. — Toda a cadeia produtiva das artes, da cultura e do entretenimento está sendo impactada pela IA, precisamos democratizar o acesso a essas ferramentas.