Rota Caipira do tráfico em disputa: especialista explica como grupo aliado ao Comando Vermelho desafia o PCC no interior de SP

Especialista fala sobre a disputa de facções no interior de SP No coração do estado de São Paulo, as rodovias que simbolizam o progresso econômico — como a Washington Luís, a Anhanguera e a Bandeirantes — possuem uma função dupla e obscura. O mesmo asfalto que escoa a produção agrícola e industrial serve, há décadas, como a artéria vital da "Rota Caipira", um corredor logístico que conecta o tráfico de drogas das fronteiras aos portos do Atlântico. Durante quase 30 anos, o fluxo dessa rota seguiu uma regra clara, imposta por uma "governança" única: a do Primeiro Comando da Capital (PCC). No entanto, a recente ascensão de um grupo local em Rio Claro (SP), autodenominado "Bonde do Magrelo", rompeu essa hegemonia, trazendo à tona uma disputa sangrenta que destoa da estabilidade observada como São Carlos e Araraquara, cidades do mesmo porte na região. A situação se agravou principalmente com a aliança desse grupo com o Comando Vermelho, uma das mais antigas facções do Brasil, surgida no Rio de Janeiro. Siga o g1 São Carlos e Araraquara no Instagram Para entender o que está em jogo, o g1 ouviu Eduardo Armando Medina Dyna, doutorando em sociologia pela UFSCar e pesquisador do Laboratório de Análise de Realidades Virtualizadas da Unesp, especialista nas dinâmicas do crime organizado em São Paulo (veja o vídeo acima). Eduardo Armando Medina Dyna, especialista nas dinâmicas do crime organizado em São Paulo g1 O 'nó' logístico da Rota Caipira A região central não é palco de disputas por acaso. Ela funciona como um "nó" logístico essencial. A droga, produzida majoritariamente na Bolívia e no Peru, entra no Brasil pela fronteira com o Paraguai (Ponta Porã/Pedro Juan Caballero) e sobe pelo Mato Grosso do Sul e Paraná. "A Rota Caipira vem chegando e distribuindo, seja por avião pequeno, caminhão, carro ou moto, por todo o centro-oeste e interior de São Paulo, até abastecer o mercado local e a exportação para mercados externos", explica Dyna. Nesse cenário, cidades como Rio Claro, São Carlos e Araraquara deixaram de ser apenas pontos de passagem. O crescimento do varejo interno (o consumo local) e a posição estratégica nas rodovias tornaram o controle dessas cidades um negócio milionário. O pesquisador aponta que o faturamento do PCC com essa logística chegou a ser estimado em mais de R$ 1 bilhão em investigações recentes. Veja mais notícias: PERIGOS: Corpo de adolescente de 15 anos é encontrado no Rio Mogi Guaçu BOMBOU NO g1: Cidade 'sem dono' no tráfico vira campo de disputas entre facções no interior IMAGENS: Fotos mostram caminhonete após acidente que matou casal no interior de SP Fontes policiais apuradas junto ao g1 apontam que a facção hegemônica tem priorizado o tráfico internacional e grandes esquemas de lavagem de dinheiro, deixando o controle do "varejo" (a venda direta nas biqueiras) em segundo plano em algumas cidades. Foi nesse vácuo de poder local que grupos menores encontraram espaço para crescer. Homem é executado em supermercado de Rio Claro Arquivo 2023 / Reprodução câmera de segurança A anomalia de Rio Claro: 'Bonde' contra o 'Comando' Se a regra em São Paulo é o monopólio, Rio Claro tornou-se a exceção. A partir de 2022, o surgimento do "Bonde do Magrelo" — formado por dissidentes que "rasgaram a camisa" do PCC — trouxe táticas de guerra para o município. Apontado como líder do grupo pelo MP, Anderson Ricardo de Menezes, o Magrelo, foi preso em 2023. O grupo local precisou buscar fornecedores rivais para sobreviver. "O PCC tem o domínio principal da droga. Como eles não iam vender para um rival, o Bonde precisou de outra via", detalha o pesquisador. Briga entre facções gerou execuções em público na cidade; veja um dos casos abaixo: Homem é executado a tiros em supermercado de Rio Claro Essa "outra via" materializou-se em uma aliança inédita com o Comando Vermelho (CV). Não se trata apenas de teoria: investigações recentes estouraram uma base logística em Hortolândia, vizinha à região, que servia de entreposto para essa disputa. No local, a polícia apreendeu fuzis, quase 100 kg de drogas e embalagens com a sigla da facção carioca. O relatório de inteligência aponta que o imóvel funcionava como um "pit stop" na rota entre o Rio de Janeiro e o interior paulista, abastecendo o conflito em Rio Claro. A cidade registrou até outubro de 2025, 25 homicídios dolosos, sendo 8 execuções. No mesmo período do ano passado foram 22, alta de 13,64%. A média da taxa de homicídios chega a ser quase 3 vezes maior que a do estado. Investigações e documentos do Ministério Público aos quais o g1 teve acesso sugerem que a escalada nos assassinatos tem relação com a disputa entre as facções. Leia mais aqui. Segundo relatório, as investigações identificaram Leonardo Felipe Panono Scupin Calixto (“Bode”) como chefe do CV na região e Edvaldo Luís Lopes Júnior (“Grão”) como seu braço direito. O PCC teria decretado a morte de ambos, fazendo com que “Bode” fugisse para o Rio de Janeiro (RJ). A defesa de Leonardo nega envolvimento dele com crimes. A defesa de Edvaldo foi procurada mas não se manifestou. Infográfico sobre a disputa entre CV e PCC em Rio Claro e região Arte/g1 Matéria divulgada pela EPTV, filiada da Rede Globo, na época: Mãe e filho são presos com drogas e armas em sítio em Hortolândia Por que o confronto explodiu? O motivo é pragmático: o controle do lucro. Ao romper com o PCC, o Bonde do Magrelo perdeu seu fornecedor de drogas. "O PCC tem o domínio principal da droga. Como eles não iam vender para um rival, o Bonde precisou de outra via", detalha o pesquisador. A solução encontrada pelo grupo local foi buscar alianças pontuais com o Comando Vermelho (CV), facção carioca que, historicamente, tem pouca penetração em São Paulo, segundo o pesquisador. "O Comando Vermelho consegue ter, talvez pela primeira vez, uma exibição em relação a São Paulo. Mas é uma aliança pontual de interesses econômicos: drogas e armas vêm para Rio Claro para abastecer o Bonde", analisa Dyna. São Carlos e Araraquara: o silêncio do monopólio Enquanto Rio Claro vive a tensão dos tiros, as vizinhas São Carlos e Araraquara permanecem sob o que pesquisadores chamam de "Pax Monopolista". A ausência de guerra aberta não significa ausência de crime, mas sim que a hegemonia do PCC nessas cidades continua intacta e funcional. Eduardo Dyna avalia como "pouco provável" um efeito contágio imediato da violência de Rio Claro para estas cidades vizinhas. Polícia Civil de São Carlos Amanda Rocha/g1 O fator alerta: O PCC já está ciente da dissidência e mobilizado para evitar que ela se espalhe. "Se o PCC não quisesse tentar controlar de volta, não teriam ocorrido os conflitos desde 2022. O surgimento do Bonde gerou uma atenção muito grande", diz o pesquisador. A lógica do lucro: Para o crime organizado empresarial, a guerra é custosa e atrai a polícia. "Um território pacificado produz mais circulação de mercadorias, maior lucro e legitimidade. O PCC não almeja uma estratégia de guerrear como o CV", explica Dyna. Em São Carlos e Araraquara, a "governança" do crime segue operando nas periferias, regulando condutas (proibição de roubos em certas áreas, veto a manobras de moto) e mantendo o fluxo da droga silencioso. O futuro na região: PCC sai ou fica? Especialista fala sobre o "fim" da hegemonia do PCC no interior de SP; entenda A pergunta que paira sobre a região central é: o interior de São Paulo vai virar um cenário de disputas multipartidárias, como o Rio de Janeiro? Para o especialista, a tendência atual aponta para o contrário. A estrutura do PCC, enraizada há 30 anos no sistema prisional e nas periferias, possui uma resiliência difícil de ser quebrada por um grupo local. "O Bonde do Magrelo foi um desvio na ordem estabelecida. Mas o PCC tem dezenas de milhares de integrantes. O Bonde, se tiver uma centena, é muito. A tendência, a médio prazo, é que haja uma retomada", projeta Dyna. Contudo, o pesquisador alerta: a quebra desse monopólio, se ocorresse de fato, não traria paz. Pelo contrário. "Se o PCC deixa de existir ou perde o controle, teríamos índices de violência e homicídio nas alturas pela disputa do vácuo de poder", conclui. Por enquanto, na Rota Caipira, a disputa segue localizada, mas o sinal de alerta está ligado. O crime, assim como a sociedade, não é estático; ele se transforma, se adapta e, acima de tudo, luta para continuar lucrando sobre o asfalto. REVEJA VÍDEOS DA EPTV: Veja mais notícias da região no g1 São Carlos e Araraquara