Autonomia universitária tem limites? A saúde pública exige respostas

A qualidade da formação médica no Brasil é tema de interesse público e estratégico, pois conecta dois pilares fundamentais do Estado: o direito à educação superior e a garantia da saúde pública. No centro desse debate está a relação entre a autonomia universitária, prevista no artigo 207 da Constituição Federal de 1988, e o controle de qualidade necessário para uma profissão que lida diretamente com vidas humanas. A autonomia universitária confere às Instituições de ensino superior a liberdade didático-científica e administrativa para definir seus currículos e métodos de ensino, estimulando a pesquisa e a inovação. Contudo, essa liberdade encontra um limite ético e legal na supervisão do sistema, que busca assegurar o cumprimento das diretrizes curriculares nacionais e a segurança do paciente. O conflito surge quando órgãos externos de fiscalização, como os conselhos de medicina, possuem mandato legal para zelar pela qualidade do exercício profissional e pela proteção da sociedade . “A autonomia universitária não é absoluta: encontra limites nas diretrizes nacionais, na avaliação do MEC e na responsabilidade social de formar profissionais qualificados e éticos”. Hoje, a formação médica enfrenta duas pressões relevantes. A primeira vem de brasileiros formados no exterior, geralmente em instituições com custos mais baixos. A segunda é interna, com o crescimento acelerado de faculdades de medicina privadas no Brasil — sem o correspondente investimento em hospitais e estrutura para práticas clínicas. + Leia mais notícias de Política em Oeste Para assegurar a qualidade na formação médica no exterior, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia vinculada ao Ministério da Educação (MEC), aplica o Revalida visando a assegurar que os profissionais que irão atuar no Brasil possuam o domínio técnico, ético e prático necessário para o exercício da profissão. Garante-se, assim, que os padrões de qualidade sejam mantidos em benefício dos pacientes e do Sistema Único de Saúde . Revalida O Revalida é composto por duas etapas eliminatórias. A primeira é teórica. Já a segunda é composta de habilidades clínicas, que avaliam a capacidade do candidato em lidar com situações e problemas clínicos frequentes nas cinco grandes áreas da medicina: clínica médica; cirurgia; pediatria; ginecologia/obstetrícia; e medicina de família e comunidade. Criado pela Lei nº 12.046/2009 e atualizado pela Lei nº 14.129/2021, o Revalida passou a ter duas edições anuais. Tive a honra, como presidente do Inep, de implantar essa ampliação a partir de 2022. Em julho de 2023, uma nova lei (nº 14.621) reduziu para quatro meses o intervalo máximo entre as edições, determinando três aplicações por ano. Infelizmente, até o momento, o Inep não cumpriu essa exigência legal. Para avaliar a qualidade da formação médica no Brasil, o MEC e o Inep, decidiram via Portaria Ministerial em 2025, substituir o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), aplicado a cada três anos em cursos de medicina, pela aplicação anual do Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica (Enamed), que iniciou em 2025 e não teve nenhum teste prévio para garantir o seu objetivo proposto. Fica a dúvida: por que o Inep priorizou a criação de um novo exame, o Enamed, via portaria, em vez de cumprir uma lei que exige mais edições do Revalida? Teria sido mais eficiente — técnica e economicamente — aplicar o Revalida tanto para egressos do exterior quanto no Brasil. Essa definição do MEC e do Inep deve ser analisada por órgãos de controle como o Ministério Público Federal , a Controladoria-Geral da União e o Tribunal de Contas da União (TCU). Expansão dos cursos de medicina A expansão dos cursos de medicina no Brasil reflete uma complexa interação entre os diversos atores envolvidos. De um lado, estão as instituições privadas de ensino superior, que representam mais de 87% do setor e veem na medicina um mercado lucrativo, dado o alto valor das mensalidades. De outro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) manifesta preocupação com a proliferação de escolas médicas sem a garantia de qualidade na formação, o que pode resultar na formação de profissionais com deficiências técnicas e, consequentemente, em impactos negativos na saúde pública. No último Enaede aplicado aos formandos de medicina, na edição 2023, 7.373 concluintes obtiveram rendimento insuficiente, representando 23,7% do total que receberem notas 1 ou 2 nesta avaliação. Sendo que 95% desses formandos, com rendimento insuficiente, cursaram medicina em instituições de ensino superior privadas. Nos dias 18 e 19 novembro de 2025 estive no 1º Fórum do CFM e Escolas Médicas, onde palestrei sobre “Autonomia universitária x supervisão conselhal — limites e interações colaborativas”. Tive a oportunidade de refletir sobre os dilemas que abordei acima e notei a preocupação do Conselho Federal de Medicina em cumprir seu papel na sociedade, zelar pela qualidade do exercício profissional e pela proteção do paciente, com respeito pleno sobre a autonomia universitária. Com o fim da moratória estabelecida pela Portaria MEC nº 328 (2018–2023), que restringia novos cursos de medicina em instituições privadas, a omissão do MEC/Inep em criar um novo marco de supervisão levou o CFM a propor um filtro: o Exame Nacional de Proficiência em Medicina (Profimed) — um “exame da ordem” para a medicina. O Projeto de Lei nº 2.294/2024, aprovado na Comissão de Assuntos Sociais do Senado em dezembro de 2025, deverá instituir o exame como requisito para o registro de médicos nos conselhos regionais da área. A proposta do Profimed não é inédita: tanto o Exame da OAB (Lei nº 8.906/94) quanto o Exame de Suficiência do Conselho Federal de Contabilidade (Lei nº 12.249/2010) já cumprem função semelhante, garantindo que a conclusão do curso não signifique automaticamente autorização para o exercício profissional. O sucesso da formação médica reside na interação colaborativa e complementar, e não na sobreposição de poderes, visando à excelência da formação sem ferir o princípio constitucional da autonomia. Assim, a supervisão do CFM deve ser entendida como complementar e colaborativa, não como invasiva. O diálogo permanente entre universidades, MEC e CFM fortalece o sistema de formação médica brasileiro, respeitando competências específicas enquanto protege o interesse público. A colaboração entre os agentes minimiza o risco de judicialização e a imposição de decisões por juízes que não foram eleitos pela sociedade brasileira. Por Danilo Dupas . Executivo, educador, economista e mestre em administração pela Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado. Ex-secretário da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação (2020-2021) e ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (2021-2022). O post Autonomia universitária tem limites? A saúde pública exige respostas apareceu primeiro em Revista Oeste .