“Teu filho levou um tiro”. A ligação em desespero da filha deu razão à “inquietação estranha” que Silvia de Lima sentia na noite de 11 de novembro de 2015. Ela tentava dormir quando ouviu uma sequência de tiros “tão altos que pareciam dentro de casa”. Eram na porta do terreno, um dos locais da série de crimes conhecida como Chacina do Curió, que vitimou na madrugada 11 pessoas no bairro de mesmo nome na Grande Messejana, em Fortaleza. A filha de Silvia se escondeu debaixo de um carro; o filho, baleado, sobreviveu; mas o sobrinho, Jardel de Lima, de 17 anos, não resistiu. O quarto julgamento da maior matança policial da história do Ceará começa amanhã. São Paulo: Marcadas pela Operação Verão, Santos e São Vicente têm dois em cada três assassinatos cometidos por policiais No Amazonas: Defensoria pede indulto humanitário para indígena Kokama violentada em delegacia no Amazonas Naquela noite, segundo a acusação, dezenas de policiais (vários de folga) combinaram em grupos de mensagens vingar o soldado Valtemberg Serpa, morto horas antes numa tentativa de assalto. De lá para cá, em três júris, 20 PMs foram julgados por homicídio, tentativa de homicídio e tortura. Seis foram condenados, cinco deles a mais de 200 anos de prisão. Ao todo, 13 agentes, suspeitos de omissão, foram absolvidos, e um teve o crime desclassificado. Os recursos ainda não foram julgados. Sete agentes vão a júri a partir de amanhã e outros três, em 22 de setembro, na quinta e última análise do caso. As defesas negam o envolvimento dos réus. O Ministério Público diz que as abordagens policiais começaram “pela procura de alvos preferenciais” e viraram um “típico justiçamento”, com vítimas “escolhidas aleatoriamente”. Os agentes agiram encapuzados, com viaturas e carros civis, e sumiram com vestígios dos crimes, segundo o MP, ou se omitiram, apesar das ligações insistentes da população. Onze mortos na cachina do Curió Divulgação/Anistia Internacional Silvia foi a primeira a chegar no local onde foram baleados seu filho, o sobrinho Jardel e outros três rapazes, Pedro Barroso, de 18 anos, Alisson Cardoso, de 17, e Álef Cavalcante, de 17. — Meu filho ficava gemendo, dizia “mamãe, socorro”. Liguei para o 190, e ficaram perguntando várias vezes a mesma coisa, meu CPF. Aí todo mundo começou a correr. Me escondi, mas vi eles recolhendo alguma coisa. Estavam de roupas escuras e com os rostos cobertos. Meu marido pegou meu filho e os meninos e levou para o socorro. Álisson e Jardel ficaram, já mortos — lembra. Extração de dados: saiba como a PF recupera mensagens apagadas dos celulares apreendidos Só o filho de Silvia sobreviveu, depois de mais de um mês internado. Irmã de Silvia, Suderli de Lima disse ter reconhecido o filho Jardel caído, pelos dedos dos pés. — Meu filho e os outros foram taxados de bandidos. Mataram nossos filhos outra vez. Chorar, eu choro todo dia. Mas, se a gente não tivesse saído do luto para a luta, não teríamos justiça — diz Suderli. Chacina do Curió: assassinados listados em camiseta com escrita “escolhidos aleatoriamente” Divulgação/Anistia Internacional Argumentos do MP Suderli foi uma das precursoras do Movimento Mães do Curió, que há dez anos cobra a responsabilização dos PMs. No julgamento que se inicia amanhã, o MP vai sustentar a condenação de sete policiais sob a acusação de terem se omitido no dia da chacina. — O PM tem de agir quando a sociedade está em risco. A lei estipula que quem tem o dever legal de agir e se omite deve ser responsabilizado. É como a babá que vê o bebê engatinhar e cair na piscina, não faz nada, e ele morre. Temos testemunhas, documentos, laudos e vídeos dessa longa chacina — afirma o promotor Vicente Anastácio, do MP-CE. Segundo o MP, câmeras de segurança mostraram a viatura em que estavam os PMs Daniel Fernandes da Silva, Gildácio Alves da Silva e Luis Fernando de Freitas Barroso junto a dois carros civis com as mesmas características dos envolvidos na morte dos jovens perto da casa de Silvia. A defesa dos PMs diz que as acusações são “improcedentes e fruto de narrativas absurdas”. O MP diz que câmeras flagraram a viatura de Farlley Diogo de Oliveira, Renne Diego Marques e Francisco Flávio de Sousa no local onde estavam os corpos de Álisson e Jardel. Os PMs foram acusados de não prestar socorro, não tentar identificar os assassinos e ainda fotografar as vítimas. A defesa do trio disse não ter autorização para se manifestar. O sétimo réu, Francisco Fabrício Albuquerque de Sousa, será julgado separado dos seus colegas de viatura naquela noite. O MP diz que eles foram acionados para ir ao local onde foram baleados Marcelo Mendes e Patrício Leite, ambos de 17 anos. Os PMs, porém, relataram não ter visto nada “anormal”, e a ocorrência foi encerrada. Os colegas de Fabrício foram absolvidos pelo júri e voltaram às ruas. Procurada, a Polícia Militar do Ceará não se manifestou.