A genealogia do imigrante: listas de chegada em portos resgatam histórias de famílias e levam à dupla cidadania

Cem anos separavam as dúvidas da pesquisadora Cláudia Altschuller sobre a origem de sua família do período de chegada de seus antepassados imigrantes, que desembarcaram no Brasil vindos da Europa nos anos 1920. Em meio à curiosidade, Cláudia recorreu ao Arquivo Nacional (AN), no Rio de Janeiro, que reúne em seu acervo listas de desembarques de vapores — embarcações da época — e fichas do cadastro de Registro Nacional de Estrangeiros (RNE). Seu avô paterno, o polonês Pedro Sterental, e o materno, Izrael Altschuller, que era romeno, foram o ponto de partida na busca pelas informações. A partir da localização da documentação, foi possível a pesquisadora rastrear e refazer os passos de pelo menos outros dez parentes. Retirados dos pais, filhos de pacientes com hanseníase têm sofrimento reconhecido e recebem desculpas do governo Sonhos desfeitos: Leia série de matérias sobre imigrantes brasileiros que vivem nos EUA sob o governo Trump Assim como Cláudia, outros filhos, netos e bisnetos de imigrantes que chegaram ao país ainda no Império têm requerido o acesso ao acervo. A partir da documentação, é possível solicitar certidões de desembarque e fichas do RNE, documentos usados para pedidos de dupla cidadania. A certidão, após a solicitação feita por meio da internet ou presencialmente, é emitida pelo AN gratuitamente em 15 dias. O acervo também é matéria prima para árvores genealógicas. Para se obter informações, é necessário ter em mãos o nome correto do imigrante e, se possível, informações complementares, como nacionalidade e o nome do navio. Pesquisadora Cláudia Altschuller no Arquivo Nacional Agência O Globo/Ana Branco Acervo levantado por Claudia Altschuller no Arquivo Nacional sobre a sua família Agência O Globo/Ana Branco O que começou como curiosidade sobre a origem de sua família, acabou se transformando em atividade para Cláudia. Hoje, a pesquisadora se dedica a levantar informações sobre parentes de outros descendentes de imigrantes. — Foi uma emoção ao encontrar os primeiros registros de minha família. Muitas informações eu não tinha conhecimento. Encontrei parentes e descobri o uso de nomes diferentes aos de batismo. Meu avô que nasceu na Romênia, por exemplo, era Pinhas Sterethal, mas no Brasil passou a ser Pedro — lembra Cláudia, ao explicar que, para garantir a permanência no país, imigrantes mudavam até de profissão: — Um dos meus avós deu entrada no porto como agricultor, mas ele era padeiro e foi trabalhar, posteriormente, em uma confeitaria. Censo: número de estrangeiros no Brasil cresce 70% e venezuelanos lideram imigração Em seu trabalho de pesquisa no Arquivo Nacional, Cláudia tem reunido não só documentos, mas histórias curiosas de famílias. Ela lembra que foi procurada por um empresário em busca de informações sobre a mãe. No acervo, que reúne também carteiras de identidade, passagens de navios e fotos, ela localizou o passaporte dessa senhora. Ao digitalizar o material e enviá-lo ao empresário, teve como resposta um agradecimento dessa mãe: — Ela tinha 99 anos na época, e o filho me relatou a emoção sentida pela mãe. Gandulla na área Responsável pelo Serviço de Paleografia do Arquivo Nacional, o historiador e paleógrafo Joelton Batista conta que ao pesquisar nas listas dos portos para a emissão de certidões de desembarque tem encontrado, entre um imigrante e outro, nomes conhecidos como o do poeta e jornalista Olavo Bilac. Há registros de seis viagens ao exterior do escritor, entre os anos de 1900 e 1912, com passagens pela Inglaterra, França, Itália e Argentina. Historiador e paleógrafo Joelton Batista Agência O Globo/Guito Moreto Do país sul-americano vizinho, destaca Joelton, há também uma ficha de entrada do jogador de futebol Bernardo José Gandulla, que jogou a temporada de 1939 pelo clube Vasco da Gama. Conta a lenda que o atleta, por ficar sempre no banco de reservas, durante as partidas pegava bolas que saíam do campo para mostrar empenho aos dirigentes do time. Seu sobrenome teria batizado a função de gandula. Para historiadores de futebol, o fato teria sido criado por cronistas esportivos da época. Passaporte de imigrantes japoneses na década de 1920 Arquivo Nacional Fichas de imigrantes japoneses recém-chegados ao Brasil no século XX Divulgação - Arquivo Nacional Joelton cita outras curiosidades encontradas no acervo, como a documentação de imigrantes originários de países que não existem mais, entre eles Pomerânia, Prússia e Lombardia. O historiador chama a atenção para o grande número de imigrantes judeus que desembarcaram no país nas décadas de 1930 e 1940, muitos fugindo da perseguição nazista. Parte consta como “sem pátria”. Outro capítulo de atrocidades da História que tem reflexos nos registros é a entrada de negros africanos no país até 1888. Muitos escravizados, quando acompanhados de seus senhores, eram registrados como “bagagem”. Há pouco material de desembarque de africanos nesse período. Segundo Joelton, pesquisadores do Arquivo Nacional trabalham em buscas de documentos para ampliar o acervo, reunindo dados em igrejas, fazendas e órgãos oficiais. — Há histórias alegres e tristes. Muitos imigrantes morriam a caminho do Brasil. Mas tinham também os nascimentos nas viagens, que poderiam demorar dez, 20 dias. Quase todos viajavam de terceira classe. Quando chegavam ao país, se não tivessem destino definido, eram encaminhados a hospedarias específicas. No Rio, a mais conhecida era a da Ilha das Flores, na Baía de Guanabara — explica. — O trabalho de pesquisa é constante. Estamos decifrando muitas siglas usadas na época nos documentos, como “LXA” (lancha) e “PPTEE” (passaporte). E nomes como “patacho”, um tipo de embarcação. A maior parte do acervo do Arquivo Nacional que reúne informações sobre imigrantes está digitalizada. Pela internet, é possível pesquisar por nomes em listas de desembarque de ao menos 18 portos, não somente no litoral, mas também fluviais. Há registros de chegada de imigrantes no Rio, Santos (SP), Recife, Natal, Guajará-Mirim (RO), Porto Murtinho (MS), Uruguaiana (RS), Florianópolis (SC), entre outras zonas portuárias. Os registros vão de 1875 até os anos 1980. Outra fonte de pesquisa são os processos de naturalização de estrangeiros. Há documentação desde 1823. Escola de Blumenau na década de 1920 Aug. Schmidt/Arquivo Nacional/Acervo/divulgação De acordo com levantamento do Serviço de Estudos sobre Usuários e Acessibilidade em Arquivos (SEU) e do Serviço de Paleografia (Sepa) do Arquivo Nacional, as certidões de desembarque estão entre os documentos mais solicitados: cerca de 800 por ano. De 2016 a 2024, o Arquivo Nacional atendeu a cerca de oito mil requerimentos de certidões de desembarque, permitindo o “acesso à informação e a direitos civis”, segundo a direção do órgão. A maior parte da documentação é usada em processos de dupla cidadania. Por meio das listas de desembarques e fichas de estrangeiros, ainda é possível traçar um perfil socioeconômico dos imigrantes. Além de nome, idade, filiação e país de origem, constam informações sobre estado civil, filhos, portos de partida e chegada, profissão, escolaridade e religião.