Garota carioca, suingue, sangue bom. Assim é Mariana Rezende, dona do Bar da Frente, eleito na quinta-feira da semana retrasada o Melhor Boteco da cidade pelo Prêmio Rio Show de Gastronomia 2025. Quatro dias depois, na última segunda-feira, com um sorriso tão aberto quanto os braços do Cristo Redentor que a abençoa da janela, a tijucana de família com origem no subúrbio recebeu O GLOBO em sua casa, em Botafogo. Pairava a alegria pelo prêmio e pelos momentos vividos com o filho, Cícero, no evento do Jockey — a dupla, ao lado de Toninho Momo (Bar do Momo) e da filha dele, Luiza, de 14 anos, encantou os convidados. Missões: Prefeito Eduardo Paes anuncia a criação de terminal de BRT para atender Caxias e Magé Lazer: Cariocas e turistas lotam praias da Zona Sul em sábado de despedida do veranico — O que aconteceu (no Rio Gastronomia) foi meu Natal, sabe? O dia que eu passei com o Cícero, vê-lo num show... Ele nunca tinha visto nenhum show. Ele colou na grade, Iza dançou na frente dele, sorriu no meio da multidão — conta ela, lembrando também da aula de croquete de mortadela que deu com o filho. — Tem sido gratificante receber esse reconhecimento. Estou feliz porque conseguimos fazer algo juntos. Era um sonho. Cícero, de 8 anos, é apaixonado pela mãezona, pelo Flamengo e por “macarrão de leite e carninha”, prato à “moda filho” que o menino devorou enquanto Mariana, de 44, dava entrevista. Além de ser a receita preferida dele, o espaguete com carne moída e requeijão é a expressão da praticidade de que precisa a mãe atípica com uma rotina cronometrada. Entre as demandas de um escritório de advocacia e das duas unidades do Bar da Frente que comanda, encaixam-se os tratamentos do filho, que tem grau 2 de suporte no espectro autista. — Gosto de dar beijo na mamãe e de macarrão — diz ele, a sós com a repórter. Múltipla jornada Advogar; levar e buscar Cícero na escola e nas terapias (hoje, a guarda é dividida meio a meio com o pai); ir ao bar caçula, em Copacabana, e ao de 16 anos, na Praça da Bandeira; se exercitar na academia; viajar Rio afora para dar aulas de culinária; prestigiar amigos em inaugurações de bar e em lançamentos de filme; beber cerveja e rir de si mesma; cuidar do cãozinho senil Bahuan, de 18 anos; arrumar tempo para paquerar. Seria difícil para muita gente seguir a receita da vida dessa cozinheira carismática e sorridente. Mas quem embarra com Mariana por aí é capaz de jurar que a vida é “bolinho”. Às risadas, Kátia Barbosa, chef renomada e amiga de marcha — o Bar da Frente recebeu esse nome por estar em frente ao Aconchego Carioca, que pertence a Kátia, na Praça da Bandeira —, lembra que a própria filha já sonhou repetir a vida da falante amiga da mãe: — Um dia, Mari estava sentada batendo papo, e minha filha Giovanna ouviu as aventuras loucas de bar, histórias... Ela escutava aquilo atenta, e falou: “Aí, Mari, eu quero a sua vida!”. E eu: “Não, Giovanna! Tá maluca? Tu quer a vida da Mari? Deus que me perdoe!” A gente morreu de rir! Até hoje, todo mundo ri da Gi encantada — diverte-se Kátia, mãe da Gi, hoje publicitária, e também de Bianca, que é... dona de bar. Mariana fugiu de casa aos 14 anos para curtir festa no Mackenzie, no Méier, apanhou da mãe, Valéria, e pagou mico na calçada pós-balada: — Eu não fazia nada ilícito, só queria estar com os amigos. Ela também foi expulsa de casa, na Tijuca, e intimada a morar com o pai, militar, em Botafogo. Andou para lá e para cá na cidade. Fez a primeira tatuagem escondida, formou-se no Ensino Médio em Processamento de Dados, passou para faculdade aos 17 e foi, sozinha, ao Maracanã ver o Flamengo pela primeira vez. Aos 18, já cursando Direito na Candido Mendes, começou a ganhar dinheiro vendendo sanduíche de frango com milho e de ricota com kani e champignon para “patricinhas e playboys”. A estreia como vendedora na faculdade foi meses depois de sair de um escritório onde trabalhava das 9h às 18h como recepcionista — as aulas eram das 18h às 22h. — Cheguei lá com a minha bolsinha: “Quem quer sanduíche natural?” Nunca ficava dura! — lembra. No segundo dia de faculdade, levou um susto. — Minha mãe quase morreu. Ela teve uma crise tireotóxica — conta. A mãe entrou em coma, ficou internada quatro meses, melhorou, e Mari saiu do hospital com mais uma penca de amigos. Valéria, por sua vez, tinha sequelas que a impediam de trabalhar fora. Então, começou a cozinhar. Ao mesmo tempo, Mariana seguia, com habilidade de mexer os caldos sem perder o ponto e temperar a vida, equilibrando vida afetiva e profissional. A integridade e a parceria, segundo os amigos, são dela. No bar, o foco no trabalho chama atenção. Mas a concentração pode virar galhofa se surgir um amigo com copo na mão. Entre a galera da cozinha, ela tem um apelido carinhoso: azar. — Chego ao bar da Praça da Bandeira e eles falam: “Ih, o azar chegou, hein! O azar chegou”. Me sacaneiam direto — diz a chef premiada, que até já experimentou momentos de tranquilidade. — Teve um período de calmaria: abri o bar, comecei a namorar, viagem para a Europa, Lula presidente, casei... Tive um casamento Criança Esperança. Cada um doou um negócio. Até que a vida entornou o caldo de novo. Quando Mariana estava grávida de cinco meses, Valéria descobriu um câncer. No puerpério, a chef viu a mãe passar pela quimioterapia, raspou a cabeça dela e comemorou seus 65 anos. Meses após dar à luz Cícero, já perto do Natal de 2018, ele perdeu a avó. Pouco depois, a cozinheira decidiu se separar do pai do filho. No ano seguinte, a família recebeu o diagnóstico de autismo do menino. Advogada, Mariana fez o próprio divórcio e o inventário da mãe. — A parte cansativa da minha vida não é o trabalho. Tenho muitos amigos. E bons. Mas a vida da mãe atípica é muito solitária. Há dores que só a gente tem — confessa. — Deitar a cabeça no travesseiro sabendo que tem muitos mil reais de terapia do filho para pagar num mês e não ter a garantia de que vai bancar dá agonia em muitos momentos. Eu até evito pensar. Sou forte, mas também quero poder ser vulnerável. Freguesia variada Dedicar-se a ser a melhor mãe que pode, dar conta de bar premiado ou conhecer pessoas? Há dúvidas entre amigos sobre qual é o maior talento de Mariana. No início do ano, na inauguração da filial de Copacabana, onde o sócio Julio Ferretti também dá expediente, a fila de convidados era diversa: tinha ator estrelado, clientes que de tanto frequentar o Bar da Frente viraram amigos, herdeiro de magnata, comentaristas de carnaval e levantadores de copo. — Eu gosto de gente, desde sempre (risos). Na escola, nunca tive uma patota só — conta, na sala com brinquedos e presentes de amigos anônimos e famosos. Seu lugar de aconchego tem também detalhes de uma decoração inacabada: — Meu melhor amigo, o Lulu (Luiz Claudio Guedes), fez o projeto. Não acabei a casa até hoje porque esse FDP resolveu morrer! — brinca, ao recordar o amigo que a ajudou após Valéria partir. A canequinha com que a mãe pegava arroz quando criança, fotos e pastas com receitas são as lembranças de Valéria, carioca cujos olhos, ao sol, “tinham cor de girassol”. A recordação virou tatuagem de flor. Mariana, que no início do ano teve depressão, se emociona ao contar que há anos não sonha com ela. — Estou vivendo um sonho, mas não consigo sonhar. Aconteceu depois que ela morreu. Era um sonho no sonho: ela falava e eu não conseguia ouvir. Mas entendia que era um “vai ficar tudo bem”. Sonhei com ela no dia em que o Lulu morreu. Eu o encontrei morto dois dias depois — diz ela, que é espírita. — Se minha mãe fosse viva, Cícero ia pesar 200 quilos. Meus amigos diziam que ela ia dar mamadeira de leite condensado (risos). Apesar da multidão que a segue, Mari aprendeu a lidar com a solitude. Para aliviar as preocupações e tratar as dores, a terapia, o médico e o mergulho no mar da Praia Vermelha são indispensáveis. A boa fase na vida familiar, e na profissional, claro, não desmobiliza a chef, que sabe que assim como cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém, apressado come cru: — Eu me levei para muitos lugares ao longo deste tempo. E vou me levar para outros. Falta decidir quais. Mas vou chegar.