Análise: Em pânico, Milei teme mais vazamentos

Javier Milei já assistiu pelo menos cinco vezes a "Homo argentum", lançado há dez dias nos cinemas argentinos. A comédia, dirigida por Mariano Cohn e Gastón Duprat, reúne 16 histórias protagonizadas pelo comediante Guillermo Francella. O presidente da Argentina viu o filme com diversos convidados em sessões privadas intermináveis, pausando cenas para explicar supostas conexões entre a mensagem na tela e ideias libertárias. Era a batalha cultural transformada em cinema. Naqueles momentos de deslumbramento, parecia impensável que, poucos dias depois, Milei se veria encurralado por um homem que parecia ter saído da galeria de estereótipos de Francella. Contexto: Polícia argentina cumpre mandados de busca após áudios vazados ligarem irmã de Milei a suposta cobrança de propina Motosserra: Milei veta aumento a aposentados e pensionistas por invalidez na Argentina Diego Spagnuolo comandou a Agência Nacional para Pessoas com Deficiência (Andis) por um ano e meio, sem experiência alguma na área. Advogado, orgulhava-se de falar sem usar eufemismos. Dizia a uma mãe de uma criança com autismo, por exemplo, que ela, ao contrário dele, tinha a vantagem de poder circular pelas rodovias sem pagar pedágio. Apegava-se à frase “não há dinheiro” frente a pedidos de assistência pública, ao mesmo tempo em que mantinha uma máquina de contar cédulas em sua casa, localizada em um condomínio fechado de Pilar, na região metropolitana de Buenos Aires. Desde a noite de terça-feira, o governo treme só de ouvir seu nome. Spagnuolo representa o golpe mais contundente no coração do discurso libertário. Gravações clandestinas, nas quais alguém, que parece ser ele, descreve com naturalidade um suposto esquema de propina na compra de medicamentos para pensionistas, projetam uma sombra diretamente sobre os irmãos Milei. Diante da adversidade, o governo libertário repete o mesmo reflexo observado no caso $LIBRA [suposto esquema de fraude envolvendo a criptomoeda de mesmo nome, promovida pelo presidente antes de gerar perdas milionárias aos investidores]. Os dias passam sem que se dê explicação definitiva para afastar as suspeitas de corrupção. Não se trata de inação causada por choque — o pânico que paralisa os irmãos Milei e seu círculo de poder vem do fato de terem perdido totalmente o controle sobre as informações que podem emergir nos próximos dias. Informações comprometedoras Fontes da Casa Rosada e do Congresso confirmam versões sobre a existência de mais gravações, em áudio e vídeo, ligadas à gestão da Andis sob o comando de Spagnuolo. Supõe-se que ele tenha sido alvo de uma manobra de inteligência ilegal, ainda não explorada totalmente por seus eventuais autores. As conversas divulgadas têm cerca de um ano. Durante pelo menos três meses, operadores circulavam oferecendo supostas informações comprometedoras relacionadas à agência, sem que o governo tivesse sido alertado. Conheça: Livro revela detalhes da vida de Karina, irmã de Javier Milei, e explica como se tornou a mulher mais poderosa do país O problema se tornou crise devido à rápida atuação da Justiça. O promotor Franco Picardi, ex-funcionário do Ministério da Justiça no governo de Cristina Kirchner, apreendeu o telefone de Spagnuolo, seus computadores e caixas de documentos. Os documentos nos autos incluem itens apreendidos nas residências dos irmãos Kovalivker, donos da drogaria Suizo Argentina, mencionada nos áudios do agora ex-funcionário. Também foram recolhidos o celular e documentos do advogado Daniel Garbellini, descrito pela voz atribuída a Spagnuolo como o nome indicado por Eduardo “Lule” Menem, subsecretário de Gestão Institucional, para a arrecadação, dentro do governo, das supostas propinas. “Estamos no escuro”, admitiu um funcionário da Casa Rosada. Não há contato direto com o tribunal ou com o Ministério Público. Desde quinta-feira, o governo também não consegue mais se comunicar com Spagnuolo. Não sabem sequer se ele está disposto a depor ao ser convocado ou se crê ter sido “traído”, como sugere um dirigente que afirma tê-lo contatado após sua demissão, feita por decreto por Milei. A decisão provocou um debate áspero na cúpula do governo. O que fazer diante de áudios em que um funcionário próximo ao presidente fala abertamente sobre um sistema de propinas de até 8%, supostamente organizado por "Lule" Menem, braço direito — e esquerdo — da secretária-geral Karina Milei? A reação lógica seria negar a veracidade do material, o já clássico “é inteligência artificial”. Mas as primeiras respostas hesitantes de Spagnuolo desaconselharam a se seguir esse caminho. Relembre: Criador de criptomoeda $LIBRA disse ter pago suborno à irmã de Milei ao buscar investidores As demissões foram uma tentativa otimista de se cortar o escândalo pela raiz antes que se espalhasse. O anúncio foi feito pela Secretaria de Comunicação da Presidência, entidade burocrática que permitiu ao secretário de Comunicação e Meios, Manuel Adorni, não se expor pessoalmente diante de notícia tão desconfortável. O decreto subsequente é uma obra-prima da ambiguidade. Nele afirma-se que “as pessoas que exercem função pública devem fazê-lo observando e respeitando os princípios e normas éticas de honestidade, probidade, retidão, boa-fé e austeridade republicana”, e que “a prevenção de condutas contrárias à integridade pública constitui um compromisso inadiável do Estado”. Em nenhum momento se explica de que são afinal acusados Spagnuolo e Garbellini, exonerados no mesmo ato administrativo. Quem tentou preencher o vazio foi o chefe de Gabinete da Presidência, Guillermo Francos. Ele denunciou uma “operação” da oposição, sem outra prova além da coincidência temporal entre a divulgação dos áudios e a sessão da Câmara dos Deputados que debateu o veto de Milei a lei que declarava emergência na Andis e ampliava os benefícios sociais federais. Mudança de postura O contraste com uma reação anterior de Karina Milei também chama a atenção. No passado, quando a apresentadora Pamela David atribuiu falsamente a ela o uso de um Rolex de US$ 35 mil, a secretária-geral e irmã do presidente reagiu com uma publicação indignada em suas redes sociais, acompanhada de fotos. Exigiu retratação. Estimulou assim uma onda de mensagens militantes em defesa de sua honra. Agora, no entanto, o silêncio se manteve quando um funcionário público afirmou, com desenvoltura, que a ela caberia 3% da propina cobrada aos fornecedores de medicamentos adquiridos pelo Estado para pessoas com deficiência. Em março: Argentina pede afastamento de juíza que ordenou a libertação de detidos em protesto por aposentados Javier Milei, por sua vez, decidiu seguir como se nada tivesse acontecido, embora seu círculo reconheça que a magnitude do escândalo exige resposta pessoal e direta. Com o caso $LIBRA foi semelhante: ele tentou contornar nas redes, rezou para que o tempo mudasse a agenda e, somente 72 horas após o post inicial esboçou uma explicação pública. Mas o novo escândalo ameaça ser ainda mais delicado. Há dólares em envelopes, como os encontrados com o empresário Emmanuel Kovalivker quando ele tentava sair de sua casa. Segundo fontes na Justiça, há também uma máquina de contar cédulas na residência de Spagnuolo, amigo do presidente. Ele pode ser ouvido falando de corrupção como quem narra um jogo de futebol. Telefones e documentos se acumulam no escritório de um promotor considerado hostil pelo governo. E tudo ocorre a 15 dias de eleições na província de Buenos Aires e a dois meses das legislativas nacionais. E a principal diferença em relação ao caso $LIBRA está na natureza do escândalo. No caso da criptomoeda, a defesa de Milei alegou tratar-se de uma “questão entre entes privados”. Quem investiu no token, que subiu como um foguete e depois despencou de valor, sabia o que fazia. Era como jogar roleta russa, afirmou à época o presidente. Já o caso Spagnuolo remete ao lado mais sórdido da casta política que os libertários prometem combater: privilegiados que se beneficiam de uma suposta rede de propinas responsável por corroer o orçamento público destinado a um dos setores mais vulneráveis da sociedade. O que fazer com Spagnuolo? O governo enfrenta uma decisão delicada: proteger o ex-funcionário, como fez com o empresário de criptomoedas Hayden Davis, ou não ter outra saída senão declará-lo “traidor e corrupto”, como já ocorreu com tantos outros no passado? Relembre: Guerra no círculo íntimo de poder de Milei gera tensão na Casa Rosada A proximidade de Spagnuolo com Milei é inegável. Ele era um dos poucos convidados pelo presidente aos domingos para ouvir ópera na Quinta de Olivos [residência oficial da Presidência]. Antes das eleições de 2023, também frequentava a casa de Benavidez, para onde o então deputado libertário havia se mudado. Ousava levantar a voz em discordâncias. Sua conta na rede social X está repleta de imagens de campanha, na estrada, com os irmãos Javier e Karina. Na primeira vez em que Milei processou um grupo de jornalistas, escolheu Spagnuolo para representá-lo. Quem o conhece diz que a proximidade entre os dois diminuíra nos últimos tempos devido à intervenção de Karina, censora habitual das relações de seu irmão. Há indícios de que ela acompanhava de perto a gestão da Andis desde o início do governo. "Lule" Menem convocou Spagnuolo três vezes em 15 dias ao seu gabinete na Casa Rosada logo após ele assumir a agência, entre fevereiro e março de 2024, conforme atestam registros oficiais. Esse interesse do homem de confiança de Karina em área tão específica é uma das incógnitas que a narrativa oficial ainda precisa esclarecer. A estabilidade econômica é um dos pilares que levaram Milei até aqui. O outro era o combate — real ou imaginário — aos privilegiados que se beneficiam do Estado. Essa viga mestra treme justamente quando se aproxima o veredito das urnas, onde o presidente busca o combustível necessário para impulsionar a segunda metade de seu mandato. Spagnuolo se tornou um elo solto. Nada segue conforme o plano quando o lema de campanha “kirchnerismo nunca mais” convive com uma voz amiga que, nas gravações radioativas, diz: “Estes são mais ladrões que os Kirchner”. Martín Rodríguez Yebra é Secretário de Redação do La Nación, que faz parte, como O GLOBO, do Grupo de Diários América (GDA), que reúne 11 dos principais jornais da América Latina.