Reviravolta na Justiça: após perdões de Trump a acusados de violência no Capitólio, procuradores são demitidos

Michael Gordon subiu pelo elevador ao escritório local da Procuradoria dos Estados Unidos, no 32º andar, carregando um recipiente com cookies caseiros e um par de pensamentos que preferia guardar para si. Por oito anos, ele havia sido um promotor federal respeitado. Mas, naquele fim de julho, o clima de verão em Tampa, na Flórida, era sufocante — e seu destino estava prestes a mudar. — Valorizo o fato de eu ser educado — disse ele. — Mas não quero minimizar o que aconteceu ou parecer que está tudo bem. Não está. Relembre: Invasor do Capitólio é condenado à prisão perpétua por planejar matar agentes do FBI 'Mártir': Governo Trump aceita indenizar família de vítima de ataque ao Capitólio Três semanas antes, apenas dois dias após receber mais uma avaliação de desempenho de excelência em seu trabalho, ele conduzia uma entrevista online com uma testemunha quando um colega, visivelmente contrariado, lhe entregou uma carta. O documento informava que Gordon estava sendo “removido do serviço federal imediatamente”. Nenhuma justificativa constava no texto, assinado pela Procuradora-geral Pam Bondi, nomeada pelo presidente Donald Trump. Gordon porém, conta, sabia bem o motivo: sua atuação no julgamento dos cidadãos que invadiram o Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021. Ele estava sendo demitido por ter processado, e com sucesso, pessoas que invadiram o Congresso dos EUA naquele dia. Cidadãos que agrediram policiais, vandalizaram o local e interromperam um momento central da democracia americana: a transferência de poder presidencial, de Trump para seu sucessor, Joe Biden, do Partido Democrata, que o batera nas urnas em 2020. Entenda: Após posse, Trump anuncia que vai perdoar os envolvidos no ataque ao Capitólio. O que isso significa? Heróis se tornaram vilões, e vice-versa Para Gordon, de 47 anos, pai de dois filhos, a carta recebida não o informava apenas sobre sua condição de desempregado — ela confirmava a percepção de que o Departamento de Justiça, instituição na qual sempre se sentira honrado em trabalhar, agora protagonizava a reinterpretação política de um episódio traumático da história americana. A violência do 6 de janeiro fora transformada, na narrativa do presidente Donald Trump, em "gesto patriótico". E promotores, como ele, que atuaram na responsabilização dos invasores, eram agora retratados como vilões, ou até traidores. Nos sete meses desde o retorno de Trump à Casa Branca o presidente eleito em novembro do ano passado concedeu clemência a quase 1.600 pessoas investigadas no maior inquérito criminal da história do Departamento de Justiça. A agência tem passada por mudanças profundas. Historicamente, sempre evitou e criticou intervenções da Casa Branca; agora, é usada de forma inédita como ferramenta política na perseguição de adversários e em ajustes de contas. Os alvos incluem o ex-conselheiro especial Jack Smith, a procuradora-geral de Nova York, Letitia James, e até o ex-presidente Barack Obama, estes dois últimos filiados ao Partido Democrata. O modelo para a transformação da Justiça americana foi justamente o 6 de janeiro — primeiro os perdões e agora o expurgo. Mais de 20 promotores que haviam sido designados para responsabilizar os invasores foram demitidos ou rebaixados — cerca de 1/4 do total da equipe. Entre eles estão promotores iniciantes, como Sara Levine, que conseguiu arrancar a confissão de culpa de um invasor que havia agredido um policial, e veteranos, como Greg Rosen, líder da força-tarefa no Departamento sobre o 6 de janeiro. Muitos outros deixaram o cargo por conta própria, por medo ou repúdio ao novo comando do país. Eleições EUA: Trump diz que invasão do Capitólio por seus apoiadores foi um 'dia de amor' O Departamento de Justiça se recusou a conversar com o New York Times sobre a reportagem, mas Harrison Fields, um porta-voz da Casa Branca, descreveu o órgão durante o governo Biden como “uma cambada de bajuladores anti-Trump”, engajada em uma “perseguição implacável para acusar o presidente e seus aliados”. Ao “erradicar os soldados de base”, acrescentou Fields, a procuradora-geral Bondi, “está restaurando a integridade do departamento”. Investigação histórica Enquanto assistia ao ataque de 6 de janeiro na televisão em seu escritório em casa, Gordon lembrou-se do que uma mentora lhe dissera quando entrou no Departamento de Justiça quatro anos antes, em 2017. Na ocasião, ela alertou: “Você provavelmente já viu coisas ruins acontecerem e pensou: ‘alguém deveria fazer algo’. Pois agora esse alguém é você”. Era uma mensagem inspiradora para alguém que havia seguido um percurso não linear até a advocacia. Antes de cursar Direito, ele lecionou História e Humanidades para estudantes do ensino médio. Um estágio no escritório na Procuradoria do Queens, em Nova York, consolidou sua decisão de se tornar promotor federal. Em Tampa, lidava com crimes violentos e narcóticos, e agora tinha a oportunidade de agir. Com o aumento dos casos relacionados a 6 de janeiro, Gordon foi destacado em 2021 para integrar a recém-criada Força-Tarefa do Cerco ao Capitólio. A equipe, liderada inicialmente por Michelle Zamarin e posteriormente por Rosen, organizou uma enorme quantidade de evidências — celulares, vídeos de câmeras corporais e de vigilância, postagens em redes sociais, milhares de denúncias — e transformou o material em centenas de casos críveis. Após libertação: Líderes de grupos de extrema direita perdoados por Trump por invasão do Capitólio indicam desejo de vingança Os promotores enfrentaram desafios legais complexos, com tentativas de mover julgamentos para evitar suposto viés liberal, acusações de motivação política, e retratação de policiais como agressores. Mas, mesmo diante de juízes nomeados por diversos governos, muitos deles republicanos, os esforços de defesa dos invasores fracassaram. O impacto visual dos vídeos do 6 de janeiro marcou a memória coletiva do país. Rosen lembra de momentos daquele dia: um segurança instruindo congressistas a esconder seus broches de identificação; o policial Daniel Hodges sendo esmagado na porta por invasores; e o comandante Ramey Kyle encorajando seus colegas a defender o Capitólio. Rosen, Gordon e outros ex-promotores da equipe enfatizam repetidamente que a ideologia não teve papel algum em seus trabalhos. Eram servidores públicos, não indicados politicamente, dedicados a representar os Estados Unidos nos tribunais. Mike Romano, que trabalhava em casos de integridade pública, juntou-se à força-tarefa por motivos similares aos de que “alguém deveria fazer algo”, citado por Gordon. — Se estamos falando de um grupo de pessoas tentando impedir o processo democrático para instalar seu candidato preferido no Poder, isso é um golpe contra a democracia — disse Romano, que acabou se tornando subchefe da força-tarefa. — Então esse grupo deve ser certamente investigado e processado, e eu queria fazer parte desse esforço. Em dezembro: Trump critica Biden por 'perdão total' a filho condenado e compara situação com a de invasores do Capitólio Entre 80 e 100 promotores atuaram no caso até 2024, resultando em centenas de condenações e confissões de culpa — incluindo agressões físicas a policiais, vandalismo e destruição de propriedade pública. A atuação da força-tarefa foi amplamente elogiada, com Rosen recebendo prêmio por “desempenho superior em função gerencial ou de supervisão”. Quando Trump foi reeleito, porém, a lógica mudou. O ex-presidente usou o motim na campanha, rebatizando o 6/1 como "um dia de demonstração de amor em Washington" e defendendo perdões em massa para invasores. Gordon e seus colegas intuíram que, se o republicano fosse eleito, uma retaliação se aproximava. Clemência em massa O supervisor de Levine, Rosen, e outros no escritório do Procurador dos EUA inicialmente pensaram que, mesmo com o Departamento de Justiça sob controle de Trump, poderiam convencer a nova liderança dos méritos de se processar ao menos os casos mais graves de 6 de janeiro ainda pendentes. Também acreditaram que a promessa de perdões de Trump não se estenderia aos condenados por violência, incluindo agressões a policiais. Eles estavam errados. Trump nomeou Ed Martin como principal promotor federal em Washington. Defensor dos invasores, Martin rapidamente engavetou as acusações contra réus ainda não perdoados. Entre os agraciados com clemência estavam: Mark Ponder, processado por Romano e condenado a mais de cinco anos de prisão por atacar repetidamente policiais com bastões de madeira. Benjamen Burlew, processado por Levine e que se declarou culpado por agarrar um policial e tentar arrastá-lo para a multidão de invasores. Richard Barnett, em caso supervisionado por Gordon, condenado a mais de quatro anos de prisão por levar uma arma de choque ao Capitólio e apoiar os pés em uma mesa no escritório da então presidente da Câmara, Nancy Pelosi, do Partido Democrata. Steven Cappuccio, condenado a sete anos de prisão por arrancar a máscara de gás de Hodges e acertá-lo no rosto com seu próprio bastão — uma das cenas de 6 de janeiro que Rosen contou jamais esquecer. Uma semana após a segunda posse de Trump, mais de uma dúzia de promotores foram demitidos. Todos haviam ajudado Smith a processar o presidente em dois casos criminais — as tentativas de reverter a derrota eleitoral de 2020 e o manuseio de documentos confidenciais. O rebaixamento de promotores juniores, como Levine, foram justificados sob alegações de “falta de confiança na implementação da nova agenda presidencial”. Galerias Relacionadas Rosen, que liderou a força-tarefa, foi rebaixado para uma função subalterna. Hoje supervisiona relatórios policiais noturnos. Romano apresentou sua renúncia ao cargo. Rosen deixou o Departamento alguns meses depois, enquanto Martin foi transferido para liderar um outro grupo especial, criado especialmente ara perseguir inimigos de Trump. Entre os novos profissionais contratados para a função estava um cidadão investigado pelo ataque ao Capitólio e que especificamente havia encorajado violência contra policiais no 6/1. E as demissões seguiram. O advogado responsável pelos indultos no Departamento de Justiça foi demitido após se recusar a recomendar em Corte que Mel Gibson, ator e destacado apoiador de Trump, tivesse seus direitos de porte de arma restaurados [após perdê-la ao agredir sua então namorada, em 2011]. Outro promotor foi demitido enquanto conduzia um caso de fraude contra um executivo de uma rede de restaurantes que também é importante doador das campanhas políticas de Trump. Ex-advogado pessoal de Trump, Emil Bove III foi escolhido a dedo para ajudar a remodelar o Departamento de Justiça de acordo com as preferências do presidente. Ele informou aos advogados demitidos que a permanência deles em seus cargos “impedia” Martin de cumprir sua “obrigação de implementar fielmente a agenda que o povo americano elegeu o presidente Trump para executar.” Desde então, Trump nomeou Bove para um cargo vitalício como juiz em um Tribunal Federal de Apelações. Neste novo contexto, os invasores do Capitólio passaram a agir com confiança, processando promotores e exigindo indenizações. Entre eles, quatro membros do Proud Boys, organização neonazista, que foram condenados por sedição e depois receberam clemência. Eles agora processam o governo e pedem US$ 100 milhões, alegando “perseguição política” por serem “aliados do presidente Trump”. Boas avaliações e um pé na bunda Em Tampa, no último dia 27 de junho, Michael Gordon encarou o colega que lhe entregara a carta de demissão e retornara ainda mais contrariado. Ele lhe explicou que havia acabado de receber uma ligação do gabinete executivo do Departamento de Justiça, em Washington, ordenando que escoltasse o procurador para fora do prédio. Recebera instruções para não avisar nenhum dos gestores do escritório do departamento, incluindo o procurador-federal Gregory W. Kehoe. — Acho que em Washington eles não queriam que ninguém dissesse aos meus colegas que não deveriam cumprir aquela ordem — disse Gordon. Ele retornou então à sessão online com a testemunha, que havia deixado no mudo. “Preciso encerrar esta entrevista imediatamente e não posso dizer o motivo", disse a ela. Quando passou a falar publicamente sobre sua demissão, a reação foi imediata e ameaçadora. Manifestantes ligados aos ataques de 6/1 e seus aliados publicaram mensagens online exigindo que sua punição fosse além da perda do emprego. “Joguem ele na cadeia!”, escreveu uma pessoa. No dia de calor sufocante de julho em Tampa, Godou voltou ao prédio para recolher seus pertences. Colocou o crachá de visitante na camisa e desapareceu no labirinto do seu antigo escritório. Em poucos dias, processaria, ele também, o governo federal. Argumenta que sua demissão violou as proteções do serviço público e foi uma retaliação política por ter atuado contra os apoiadores de Trump que participaram do motim de 6/1. Gordon pôs suas coisas em caixas: as fotografias da família, os diplomas emoldurados e as cinco bandeirolas de campeonatos vencidos por seu time, de basquete, o San Antonio Spurs. Em seguida, empurrou um carrinho que transportou os restos de sua carreira federal em direção ao hall dos elevadores. Ele conduziu o carrinho pela garagem subterrânea até seu Ford vermelho. Seus pertences couberam todos no porta-malas. O recipiente com os poucos cookies restantes ficou na cadeira do carona. E o ex-promotor, de alguma forma tão exemplar quanto descartável, partiu de uma agência governamental vital para o país que ele, no entanto, já não mais reconhecia.