“Você poderia descrever as roupas que está usando e por que as escolheu?” É com essa pergunta que a estilista Bella Freud começa as entrevistas que conduz comnomes como Jonathan Anderson, Kate Moss, Marina Abramović, Julianne Moore, Rick Owens e Cate Blanchett em seu podcast Fashion Neurosis, lançado em outubro passado. Talvez, para alguns, o questionamento possa soar mundano, mas ele é a centelha que dá o pontapé aos papos sinceros e íntimos do programa. Nele, convidados falam, de maneira franca e sem as resguardas que muitas vezes acompanham entrevistas, sobre temas que flertam com o subconsciente. Bella os coloca deitados em um divã, faz perguntas com suavidade e escuta coma generosidade de uma boa amiga. Vários dos personagens são, inclusive, amigos seus, o que também ajuda. Como o seu sobrenome indica, ela é filha do ilustríssimo pintor Lucian Freud e bisneta de Sigmund Freud. “Nos anos 1960, na Inglaterra, ‘Freud’ era só um nome estranho que ninguém sabia pronunciar. Eu não cresci com essa coisa ‘nepo’. Meu pai era um artista muito focado que acreditava que ‘você é tão bom quanto o que você faz’. Só aprendi um pouco mais sobre Sigmund Freud quando fiquei mais velha, mas achei fantástico ter algum tipo de relacionamento distante com ele”, diz. Aos 64 anos, vestindo uma camisa jeans e com duas tranças longas no cabelo, ela esteve no Brasil pela primeira vez para participar de eventos relacionados ao seu podcast e conversa com a mesma atenção e fala suave que usa para interrogar seus convidados. Fotografada no Brasil, Bella Freud usa camisa COHÍ, blazer e calça BELLA FREUD. Colar TIFFANY & CO. e sapatos CHRISTIAN LOUBOUTIN Vogue Brasil/ Gil Inoue A trajetória de Bella valeria um podcast por si só. Seus pais não eram casados, o que a levou a crescer com sua mãe, Bernardine Coverley, em Ashdown Forest, no sudoeste da Inglaterra. Aos 16 anos, saiu de casa e mudou-se para Londres, onde conheceu o movimento punk e encontrou sua turma. “Eu gostava do quão extremo era, eu sentia que ele representava meus sentimentos igualmente extremos sobre a vida, que eu acho que são normais naquela idade. As pessoas eram inventivas e rígidas, e havia uma elegância nisso”, diz. Nessa época, costumava ver Vivienne Westwood nas boates. “Todo mundo queria trabalhar na Seditionaries, a loja dela. Eu tinha um cabelo comprido, como tenho agora, e cortei ele bem curto e senti uma coragem de ir até ela perguntar se havia um emprego para mim. Ela me olhou daquele jeito intimidador e disse assim: ‘Você cortou o cabelo, né? Tá bom, pode trabalhar às quartas-feiras’”, lembra. A loja era igualmente intimidadora – tinha as janelas bloqueadas por tábuas, o que fazia só ser possível ver o interior do espaço através da porta. “Lá no fundo ficavam umas garotas emburradas – eu era uma delas – com uma atitude de ‘entre, se tiver coragem’. Eu tinha 17 anos, e foi um dos momentos da minha vida em que entendi o poder das roupas. As pessoas tinham medo de nós por causa da nossa aparência. Não é exatamente algo que você quer manifestar quando é adulto, mas, para um adolescente, é interessante”, diz. Suéter BELLA FREUD, calça MONDEPARS e colares SAUER Vogue Brasil/ Gil Inoue Revistas Newsletter Aos 21 anos, se apaixonou perdidamente por Alessandro Ruspoli, um príncipe italiano 36 anos mais velho, e decidiu se mudar para Roma e estudar moda na Accademia della Moda. Depois de viver o romance e os estudos, retornou ao Reino Unido onde trabalhou novamente com Westwood, mas dessa vez como sua assistente. “Muitas vezes, ela apresentava as suas ideias e eu não as entendia de primeira, achava que não faziam sentido nenhum. Com o tempo, eu percebi que precisava esperar antes de julgar. Essa foi uma grande lição: ouvir e aprender antes de predeterminar.” Em 1990, lançou sua marca homônima, que estourou graças aos suéteres de tricô com dizeres como “Ginsberg is god” e “psychoanalysis”, mas cuja oferta hoje também inclui alfaiataria, vestidos, casacos, itens para casa e fragrâncias. Apesar de seu sucesso no design, Bella sempre teve talento como comunicadora. Ela possui uma página em seu site com textos escritos por si mesma que contam histórias como a noitada que viveu com Diane von Furstenberg em Nova York, já escreveu para os jornais britânicosThe Times eThe Telegraph e criou uma revista intitulada Memo ao lado da modelo e atriz Anita Pallenberg. Essa proximidade com a comunicação, aliada ao seu interesse em explorar a relação da moda com a psique, a levou a começar o podcast. “Eu sabia que as roupas são muito mais interessantes do que as pessoas imaginam, e eu sentia que isso poderia ser uma ‘entrada’ para abordar outros assuntos. Eu fiquei com uma obsessão de tentar entender qual seria o formato desse projeto. No começo eu só sabia que era importante que os convidados ficassem bonitos, porque senão ninguém toparia participar e eu queria muito que as pessoas vaidosas se deitassem no sofá”, brinca. Ela gravou um piloto e mostrou um clipe para Kate Moss, alguém que ela descreve como “dona de um sexto sentido infalível para o que funciona”. A surpresa para Bella foi ouvir de sua amiga, que odeia ser filmada, que ela queria participar. “Eu não tinha nenhuma ilusão de convencê-la, então quando ela disse isso, eu pensei que deveria estar no caminho certo.” A moda sempre permeia as conversas da britânica com os seus convidados. “É com umas pessoas julgarem essa indústria com olhar unidimensional, mas a roupa certa significa que você não precisa pensar em si mesmo e pode usar o máximo da sua inteligência com outras coisas. É uma ferramenta de comunicação importantíssima. Nós que trabalhamos nessa indústria sabemos disso e queremos que outras pessoas saibam também, para que as roupas e o design sejam usados para potencializar o poder de cada um”, diz. Camisa, blazer e calça, tudo BELLA FREUD Vogue Brasil/ Gil Inoue Apesar de não ter morado na mesma casa que o pai na infância, os dois tinham uma boa relação, e foi ele quem desenhou o logo da sua marca. “Eu modelava com frequência para ele, e às vezes eu via que a pintura não estava saindo como o esperado e ele ficava tão tenso que apunhalava a própria perna com o pincel. Era estressante, parecia que o meu sangue saía do corpo. Mas ele não parava de pintar, ele persistia até dar certo, e ele me ensinou a nunca desistir. A Vivienne também, na verdade. Por muito tempo as pessoas achavam que era uma piada, até que entenderam que o trabalho dela era completamente fantástico. E mesmo assim ela nunca parou de fazer o que acreditava. Eles me ensinaram que o mais importante é perseverar e ser tenaz.” Ela se lembra de um episódio específico, quando tinha 10 anos de idade, em que sua mãe a vestiu com uma blusa que ela detestava. “Sabe aquela sensação de que algo não está certo?” Ela foi até um brechó e comprou camisetas masculinas. “Quando coloquei no corpo, pensei: ‘essa sou eu’. Foi um momento transformador”, diz. Ela categoriza o preconceito que muita gente tem com a moda como um tipo de ignorância. “É como um medo, eu acho, de que, se você expressar interesse pela sua aparência, você será categorizado como não inteligente. Mas, obviamente, é algo estranho de se considerar mutuamente exclusivo. Vestir-se bem, na verdade, te liberta da autoconsciência. Há um mal-entendido de que celebrar a aparência significa ser vaidoso, e que a vaidade é um crime terrível. Mas é perfeitamente normal ligar para a sua aparência e isso pode existir em conjunto com várias outras qualidades, como compaixão e coragem.” Bella diz não ter lido muito da obra de seu bisavô, mas é rápida em responder o que a moda e a psicanálise têm em comum: “Bom, eu acho que as roupas são a superfície e tudo o que está embaixo pode ser revelado ou escondido, e a psicanálise também é sobre isso, o que você mostra e o que você esconde”, diz. Ela tem um ponto – afinal, as roupas são um prisma para nos expressarmos, o divã é outro. Fotos: Gil Inoue Styling: David Pollack Beleza: Laura La Laina Arte: Sthe Louise Camareira: Edna Mesquita Assistente de Foto: Igor Kalinouski Produção Executiva: Diego Casmurro e Circ. Brasil Produção de Moda: Luiz Machado Assistente de Beleza: Beatriz Cardoso Tratamento de Imagem: Alt Retouch Agradecimentos: Herança Cultural