Morto no domingo, aos 93 anos, Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, o Jaguar, terá suas cinzas espalhadas pelos bares que frequentava no Rio e em São Paulo. O corpo do icônico cartunista, um dos fundadores do Pasquim, foi velado e cremado ontem, no Memorial do Carmo, zona portuária do Rio. Leia também: Companheiros do Pasquim, Sérgio Augusto, Miguel Paiva, Claudius e Chico Caruso recordam história de Jaguar Pasquim: Fundador do lendário jornal satírico, Jaguar ficou 22 anos na publicação Jaguar deixou o destino das cinzas determinado em cartório - e também em um capítulo de seu livro "Confesso que Bebi - Memórias de Um Amnésico Alcoólico", publicado em 2001. "Se acharem que é muito bar para pouca cinza basta incinerar um pangaré velho para inteirar. Evidentemente é trabalho (e porre) para vários dias, páreo duro com a morte de Quincas Berro D'Água, que Jorge Amado descreveu na sua obra-prima", escreveu. Alguns dos estabelecimentos caros ao cartunista já não existem mais, como o Bar Luiz, do centro do Rio, ou ainda o Piratininga, na Vila Madalena, em São Paulo. Entre as paradas já garantidas estão o Bracarense e o Jobi, ambos no Leblon, Zona Sul do Rio. - A ideia é separar as cinzas em diferentes saquinhos e ir levando de bar em bar - explica Eliana Caruso, amiga da família. No velório, velhos companheiros de copo de Jaguar vieram se despedir do cartunista e brincaram com a fama de boêmio do cartunista. Ao abrir uma garrafa de água mineral gelada, o ator Otávio Augusto, 80 anos, exclamou: - Desculpe, Jaguar! - disse ele, antes de ser lembrado por Eliana que o próprio Jaguar já havia abandonado o álcool por razões médicas. - Jaguar era um ser, um espírito top. Só queria que ele voltasse por alguns minutos para dizer como é o lado de lá. O também ator Stepan Nercessian lembrou que Jaguar era "duro na queda" em relação à bebida. - Tomamos muito chope junto - diz o presidente do Sindicato dos Artistas. - O Jaguar mesmo quando estava de mau humor era bem humorado. Trecho do livro "Confesso que bebi" Já que a minha vida é uma bagunça sem remédio, pelo menos resolvi planejar direito a minha morte. Para começar, decidi ser cremado. Sem choro, nem vela, sem velório nem enterro, coisa medieval, massacrante, um sofrimento insuportável para a família e os amigos, menos, evidentemente, para o defunto, que não está nem aí, para ele tanto faz ser enterrado, explodido ou catapultado para o espaço. Par délicatesse, para poupar os que ficam, escolhi a cremação. Mas atenção, para ser cremado, não basta querer. É preciso preencher um formulário que se apanha na Santa Casa, detalhando por escrito o destino que deve ser dado às cinzas e depois registrar em cartório, com três testemunhas. No meu caso, determinei que as cinzas sejam espalhadas pelos bares que bebi. "Vai faltar cinza", foi o comentário de Chico OPF, encarregado com Albino Pinheiro - que já tirou o corpo da missão - Ferdy Carneiro, Machadão e Célia, minha mulher, de executar meu desejo. Ruy Espinheira Filho, vate de estro rápido e certeiro, lá de Salvador mandou-se o poema que batizou de "A vontade": "Jaguar que também é Sérgio de Magalhães Jaguaribe fez registrar em cartório que, ao concluir a vida seja seu corpo cremado e as cinzas distribuídas pelos bares em que haja eventualmente bebido. Fato que assaz preocupa a nomeada executora da vontade - Célia, a própria mulher do cujo, doutora que de hábito leva tudo com espírito folgazão e agora se preocupa de grave preocupação. Pois, não sendo seu marido tão amplo de carnes quão vasto em deveres etílicos, seja difícil cumprir-se essa vontade : que as cinzas jamais serão suficientes a tantos bares bebidos, mesmo se distribuídas com extrema contenção, cabendo apenas a cada não mais do que um quinhão parco, breve, limitado à quantidade de um grão". Irrelevante preocupação, retruco. Se acharem que é muito bar para pouca cinza basta incinerar um pangaré velho para inteirar. Evidentemente é trabalho (e porre) para vários dias, páreo duro com a morte de Quincas Berro D'Água, que Jorge Amado descreveu na sua obra-prima. Albino Pinheiro e eu que, juntos, organizamos festas memoráveis, não merecíamos perder essa pândega. Eis que aparece um idiota lá de Brasília, que resolveu atrapalhar a minha vida, digo, minha morte, inventando uma lei que obriga todo cidadão a doar seus orgãos, a menos que conste expressamente no seu documento de identidade que não deseja fazê-lo. Impossível imaginar algo mais invasivo, prepotente e fascista. Quando acabar essa crônica, vou encarar uma fila no IFP para tirar nova identidade com a cláusula impeditiva. Mesmo porque coitado do cara que ganhar meu fígado para transplante. Ou meu olho míope. Meus ouvidos moucos. Cérebro amnésico. Coração com disritmia. Países-baixos vasectomizados. Tudo caindo aos pedaços, com prazo de validade vencido. Mas para mim tem um valor afetivo, afinal, estão comigo desde o começo. Aqui, ó, que vão me lotear. Vou torrar tudo.