No último domingo (24), Marsha P. Johnson teria completado 80 anos. Mulher trans, negra, drag queen, artista e ativista, ela foi uma das mais importantes lideranças do movimento LGBTQIA+ no século 20. Sua trajetória, pelo acolhimento e pela alegria como ferramenta política, segue inspirando novas gerações em todo o mundo. De LGBT a LGBTQIAPN+: por que a sigla mudou e o que significa cada letra? Wanessa Camargo canta com Luan Pereira, dueto viraliza e web não perdoa: 'Recado Dado' Da infância em Nova Jersey às ruas de Nova York Marsha nasceu em 1945, em Elizabeth, no estado de Nova Jersey. Designada do sexo masculino ao nascer, era a quinta de sete filhos de uma família afro-americana da classe trabalhadora. Desde criança gostava de vestidos e roupas femininas, mas abandonou esse hábito por conta do bullying e da violência. Após se formar no ensino médio, mudou-se para Nova York com apenas 15 dólares e uma mala de roupas. Marsha P. Johnson (1945-1992) na Pride March em Nova York, símbolo de resistência e luta pela liberdade LGBTQIA+ Getty Images Na cidade, retomou a expressão de sua identidade e adotou o nome Marsha P. Johnson. O “P.” vinha de sua frase favorita: “Pay It No Mind”, em tradução livre, “Não se importe”. A expressão se tornou um lema de vida. Ela se descrevia como travesti, drag queen e gay; o termo “transgênero” só se popularizou depois de sua morte. As dificuldades foram muitas. Marsha trabalhou como garçonete, artista de rua e, para sobreviver, também recorreu ao trabalho sexual, enfrentando violência policial e abusos constantes. Muitas vezes não tinha moradia fixa, dormindo em hotéis baratos, restaurantes e até cinemas. Em 1992, resumiu esse período em uma entrevista: “Eu não era ninguém, ninguém, de Nowheresville até me tornar uma drag queen”. Stonewall: a virada histórica O grande ponto de virada em sua vida ocorreu em 28 de junho de 1969, durante a invasão policial ao bar Stonewall Inn, em Nova York. O local era um dos poucos espaços de sociabilidade para gays, lésbicas, drag queens e trans. Naquela madrugada, a violência policial desencadeou uma reação inédita: os frequentadores resistiram. Marsha e sua amiga Sylvia Rivera, também mulher trans e porto-riquenha, estavam entre as primeiras da linha de frente. Mais tarde, Johnson declarou em entrevista que, quando chegou ao bar, “o lugar já estava pegando fogo e já havia uma invasão. Os tumultos já haviam começado”. 27 de julho de 2019, Amsterdã: milhares celebram a Pride Walk pelo 50º aniversário de Stonewall, lembrando o passado e construindo o futuro LGBTQIA+ Getty Images A revolta, conhecida como Revolta de Stonewall, é considerada o marco inicial do movimento LGBTQIA+ moderno. Dela nasceram organizações como a Frente de Libertação Gay e, no ano seguinte, a primeira Parada do Orgulho Gay. A criação da STAR e o acolhimento às juventudes Frustrada com a exclusão de pessoas trans e negras dentro do próprio movimento, Marsha fundou, em 1970, junto com Sylvia Rivera, a Street Transvestite Action Revolutionaries (STAR). O grupo tinha como missão abrigar e alimentar jovens LGBTQIA+ expulsos de suas famílias. A STAR House, primeira casa criada pelo grupo, chegou a funcionar na caçamba de um caminhão abandonado. Mais tarde, mudou-se para um prédio em ruínas, onde Johnson e Rivera ofereceram moradia e apoio a dezenas de jovens. STAR em ação na Casa de Detenção de Nova York, acolhimento e luta por jovens trans e travestis Fred W. McDarrah Marsha também sonhava em celebrar a vida dentro do movimento. Em uma de suas reflexões, disse: “All Gay Love will do is give birthday parties” (“Tudo o que o Gay Love fará será dar festas de aniversário”), explicando que alegria e celebração eram também formas de resistência. Marsha ficou conhecida por suas coroas de flores e roupas coloridas de brechó, que transformava em verdadeiros trajes de realeza. Essa estética não era apenas vaidade: era política. “Darling, cada banner que eu faço é muito trabalhado”, dizia sobre os cartazes e bandeiras que produzia para as marchas, como o famoso com os dizeres “GAY POOR PEOPLE” (“Pessoas Gays Pobres”). Ela participou de grupos artísticos como o coletivo drag Hot Peaches e chamou a atenção de Andy Warhol, que a retratou na série Ladies and Gentlemen em 1975. Desde os anos 1970, unia teatro, moda e artes têxteis para desafiar normas de gênero e reafirmar a existência trans. Voz e consciência política Marsha sempre articulou sua luta em termos de justiça social. Em uma entrevista de 1972, declarou que sua maior ambição era “ver os gays liberados e livres e ter direitos iguais aos de outras pessoas na América”. Também disse: “Enquanto os gays não tiverem seus direitos em toda a América... não há motivo para comemoração”. Outra frase célebre atribuída a ela resume seu pensamento coletivo: “Você nunca tem completamente seus direitos, individualmente, até que todos tenham”. Lançamento do 50º aniversário do Young Vic em Londres: instalação artística celebra Marsha P. Johnson e outros pioneiros da comunidade negra Getty Images Apesar do sorriso constante, a vida de Marsha foi atravessada por dificuldades. Sofreu colapsos mentais, internações e prisões, mas nunca deixou de lutar. Em 1990, foi diagnosticada com HIV e fez questão de falar publicamente sobre isso para combater o estigma. Em 6 de julho de 1992, seu corpo foi encontrado no Rio Hudson, em Nova York. A polícia inicialmente classificou como suicídio, mas amigos e ativistas sempre contestaram. A investigação foi reaberta em 2012, sem conclusões definitivas. O documentário da Netflix “A Morte e a Vida de Marsha P. Johnson” (2017) mostra as falhas da apuração e sugere que ela pode ter sido vítima de crime de ódio. Com o passar dos anos, sua importância foi cada vez mais reconhecida. Em 2019, a cidade de Nova York anunciou um monumento em homenagem a Marsha e Sylvia Rivera, o primeiro dedicado a mulheres trans na cidade. Em 2020, o estado de Nova York nomeou um parque no Brooklyn em sua memória. Seu nome hoje batiza centros culturais, coletivos, espaços de acolhimento e movimentos em defesa de pessoas trans e negras. 80 anos de flores e luta No aniversário de 80 anos de Marsha P. Johnson, sua memória se faz ainda mais urgente. No Brasil, essa urgência é ainda mais evidente. Um dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), divulgado em janeiro de 2025, revelou que o país segue sendo o mais letal do mundo para essa população, pelo 16º ano consecutivo. Foram registradas 122 mortes em 2024, número que representa uma redução de 16% em relação ao ano anterior, mas que mantém o Brasil na liderança global desse tipo de violência. O aniversário de Marsha P. Johnson sendo comemorado em 2020, em Washington Square Park, Nova York Getty Images Segundo o levantamento, a maioria das vítimas são mulheres trans jovens, negras e nordestinas, assassinadas em espaços públicos, durante a noite, quase sempre com requintes de crueldade. A expectativa de vida dessa população no país continua sendo de apenas 35 anos. O mundo não lhe deu tempo de ver essa realidade se concretizar, mas seus 80 anos lembram que a semente foi plantada. E como suas flores, segue florescendo nas ruas, nos movimentos e nas vozes de quem insiste em existir.