A cidade de Chicago, nos Estados Unidos, tem servido como um campo de testes para algumas das principais ideias da esquerda sobre raça e educação. Redes escolares na cidade e em subúrbios próximos estão se esforçando para contratar mais professores negros, ampliar o ensino de história negra e treinar docentes em conceitos como privilégio branco. Algumas dessas políticas já mostraram resultados consistentes na melhoria da aprendizagem, enquanto outras ainda carecem de evidências. Mas, para o governo do presidente americano, Donald Trump, tudo isso pode ser ilegal. Entenda: Trump mira cidades com prefeitos negros ao testar intervenções com a Guarda Nacional Lisa Cook: Quem é a primeira diretora negra do Fed que enfrenta acusações de Trump sem provas Agora, distritos escolares com programas voltados para apoiar estudantes negros e outros grupos se veem vulneráveis juridicamente. A Casa Branca vem revertendo o papel tradicional do governo federal em relação a raça e educação, atacando o que chama de “D.E.I. ilegal” (sigla para diversidade, equidade e inclusão). O governo tem usado o Escritório de Direitos Civis do Departamento de Educação, criado para proteger minorias raciais e étnicas, para tentar encerrar programas destinados justamente a esses alunos. Por meio de decretos, investigações e ameaças de cortar financiamento, o governo colocou na defensiva um movimento que já foi bipartidário e buscava enfrentar o legado da escravidão e do racismo. Até mesmo estados de inclinação republicana, como Flórida e Mississippi, têm programas de recrutamento de professores voltados a diversificar a força de trabalho — iniciativa que o governo Trump chama de ação afirmativa ilegal. Há 20 anos, pesquisas demonstram que estudantes têm melhor desempenho acadêmico quando seus professores compartilham elementos de sua identidade racial, cultural ou linguística. Além disso, especialistas, formuladores de políticas públicas e pais têm manifestado preocupação com a falta de modelos masculinos diversos, o que se conecta às dificuldades enfrentadas por meninos na escola e na saúde mental. Nos últimos anos, porém, conservadores passaram a defender com mais força políticas “daltônicas”, que não consideram raça. Agora, advogados do governo Trump argumentam que, quando escolas direcionam recursos a grupos raciais historicamente desfavorecidos, estariam discriminando aqueles que sempre estiveram à frente. Saiba mais: Tribunal permite que Trump proíba programas de diversidade, equidade e inclusão, diz WSJ O impacto dessa reversão é mais evidente no estado americando de Illinois. O Departamento de Educação anunciou investigações contra dois dos sistemas escolares mais proeminentes do estado, em Chicago e em Evanston, acusando-os de violar a lei ao concentrar esforços de melhoria escolar em crianças não brancas. Conservadores esperam que esses casos estabeleçam precedentes que se espalhem por escolas e outras instituições em todo o país. Kimberly Hermann, presidente da Southeastern Legal Foundation, grupo conservador que moveu ação judicial e apresentou denúncia federal contra o distrito escolar de Evanston, reconheceu que muitos líderes educacionais acreditam que programas com recorte racial ajudam estudantes em desvantagem: — Às vezes, você pode ter um objetivo nobre, mas não pode implementá-lo de forma que viole a lei. Em cerco ao ensino superior nos EUA: Governo Trump abre investigação contra mais de 50 universidades por programas de diversidade Neste ano letivo que inicia entre agosto e setembro, as Escolas Públicas de Chicago lançarão o chamado "Plano de Sucesso do Estudante Negro". O programa prevê dobrar o número de professores negros contratados até 2029, reduzir punições disciplinares contra estudantes negros, expandir o ensino de história afro-americana e aumentar a matrícula de alunos negros em cursos avançados. Sarah Parshall Perry, vice-presidente do grupo conservador Defending Education, que entrou com queixa federal contra o plano, argumenta que, ao focar demais nos estudantes negros, Chicago corre o risco de ignorar as necessidades de outros grupos, como os hispânicos. Estudantes negros representam 34% da rede, enquanto hispânicos são quase metade. — Eu acho que muitas dessas escolas têm boas intenções, mas estão mal orientadas — disse Perry. — Na tentativa de nivelar o campo para um grupo específico, falham em considerar as necessidades de todos os estudantes. Dados estaduais mostram que estudantes hispânicos têm desempenho ligeiramente melhor que os negros em testes padronizados e são mais propensos a frequentar aulas avançadas. Mas ambos os grupos estão bem atrás de colegas brancos e asiáticos. Em abril, ao anunciar a investigação, Craig Trainor, secretário adjunto de direitos civis no Departamento de Educação, acusou Chicago de reservar recursos a “alunos favorecidos” e declarou que o governo “não permitirá que fundos federais, destinados a todos os estudantes, sejam usados de forma perniciosa e ilegal.” Em março: Governo Trump restringe uso de quase 200 termos, como 'feminismo', 'diversidade' e 'LGBTQ', em agências federais A teoria do novo plano é que apoiar os alunos negros trará benefícios a todos. O distrito chama essa abordagem de “universalismo direcionado”: metas ambiciosas podem ser atingidas por todos se a prioridade for dada a quem está mais distante das oportunidades. Pesquisas recentes sobre cursos de estudos sociais que refletem a identidade dos estudantes mostram melhorias em notas e frequência. Ashley Harris, professora do segundo ano em Chicago, disse que, sem apoio extra, muitos alunos negros ficariam à deriva em escolas ainda fortemente segregadas por raça e classe. Ela criou aulas sobre Jackie Robinson e, por um tempo, ofereceu um programa extracurricular de mentoria para meninas negras, onde discutiam autoestima diante de estereótipos negativos. Harris rejeita a visão de Trump de que essas iniciativas sejam discriminatórias. — Esse argumento está completamente enraizado no racismo — disse, comparando os programas educacionais com o movimento Black Lives Matter: — Não foi criado para dizer que outras vidas não importam, mas para afirmar: ‘Reconheçam o valor da vida negra.’ Initial plugin text No norte de Chicago, o Distrito 65, que administra escolas de ensino fundamental e médio em Evanston e Skokie, tem políticas semelhantes há anos. Ele oferece um programa afrocêntrico e matricula todos os estudantes no 8º ano em Álgebra I — antes considerada disciplina avançada, na qual negros e hispânicos eram sub-representados. Mas outro conjunto de práticas — treinamentos antirracistas para professores — tornou o distrito alvo do governo Trump. Uma professora de teatro branca, Stacy Deemar, apresentou várias ações legais alegando que a rede criou um “ambiente racialmente carregado”, em parte por exigir que funcionários participassem de formações sobre privilégio branco e fragilidade branca, algumas realizadas em “grupos de afinidade” segregados por raça. O governo Trump abriu investigação após a denúncia de Deemar, representada pela Southeastern Legal Foundation. Defensores do treinamento antirracista dizem que ele ajuda brancos a reconhecer preconceitos, como punir um menino negro mais severamente que um branco pela mesma infração. Mas algumas pesquisas apontam que o método pode gerar ressentimento e até reforçar estereótipos. O distrito, porém, registrou queda de 50% em incidentes graves de comportamento em dois anos. Desde 2021, a proporção de alunos que atingem os padrões estaduais em matemática e leitura também cresceu — embora muitos ainda precisem refazer álgebra no ensino médio. O Distrito 65 recusou-se a responder perguntas específicas sobre seus programas, alegando não poder fazê-lo devido à investigação em andamento. “A denúncia distorce nossas iniciativas legais e essenciais, voltadas à aprendizagem profissional e aos alunos”, disse em comunicado. Em seus primeiros atos: Trump encerra programa de diversidade do Pentágono e proíbe transgêneros no Exército dos EUA Batalha legal em expansão Independentemente de funcionarem ou não para melhorar o aprendizado, a Casa Branca considera muitos desses programas ilegais. O governo cita o Título VI da Lei dos Direitos Civis, que proíbe discriminação racial, para afirmar que discussões sobre privilégio branco e racismo estrutural criam ambientes hostis. Também classifica grupos de discussão de uma só raça ou sexo como “atividades segregacionistas”. Além disso, avança com uma tese jurídica inédita: como a Suprema Corte proibiu a ação afirmativa em admissões universitárias, nenhuma instituição de ensino, em qualquer nível, poderia direcionar benefícios a um grupo racial específico. Um juiz federal rejeitou vários desses argumentos em agosto, observando que a decisão de 2023 não restringe o currículo escolar público. O magistrado também bloqueou uma tentativa do governo de suspender financiamento a escolas e universidades com programas de diversidade, alegando violação da liberdade de expressão. Mas a Casa Branca pode recorrer, e a questão sobre se escolas públicas podem ou não considerar raça provavelmente chegará à Suprema Corte. Alguns juízes conservadores já manifestaram interesse em julgar o tema. Justin Driver, professor de Direito Constitucional em Yale, disse que muitos distritos podem “mudar discretamente suas práticas em vez de abrir batalhas judiciais”. E completou: — Essas questões estarão nos tribunais por anos. Pelo menos um distrito escolar progressista — Los Angeles, o segundo maior do país — decidiu reformular seu "Plano de Sucesso do Estudante Negro" no fim do ano passado, após enfrentar denúncia semelhante. Para evitar sanções federais, retirou o foco racial explícito, mas manteve os objetivos ao direcionar recursos para os alunos mais vulneráveis, independentemente da cor. As escolas públicas de Chicago não responderam por que insistem na abordagem com recorte racial. Contudo, a política educacional mudou com Trump na Casa Branca. Líderes democratas, como o prefeito de Chicago, Brandon Johnson, e o governador de Illinois, JB Pritzker, têm aproveitado o confronto político. — O governo Trump busca qualquer pretexto para atacar cidades administradas por democratas, especialmente aquelas lideradas por prefeitos negros — disse Johnson, que já sinalizou recorrer à Justiça caso a cidade perca financiamento federal. — Não há nada de ilegal em oferecer apoio direcionado a estudantes negros.