Excesso de energia pode provocar apagão? O Brasil vive hoje um paradoxo em seu sistema elétrico: em alguns momentos de excesso precisa cortar a geração de energia renovável, e, em outros, aciona termelétricas, mais caras e poluentes. Os cortes na geração de energia — o chamado curtailment — estão cada vez mais frequentes e já geram prejuízos bilionários aos setores eólico e solar. E mais: segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico, a previsão é de que eles aumentem. O g1 conversou com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), representantes dos setores eólico e solar e especialistas do mercado para entender quais soluções estão sendo estudadas para diminuir os cortes. A resposta é multifatorial — e depende de medidas a médio e longo prazo. O setor enxerga como principais saídas o investimento em baterias, o aumento do consumo e a implementação de tarifas dinâmicas. (entenda mais abaixo). Mas por que isso está acontecendo? O sistema elétrico brasileiro foi estruturado entre as décadas de 1960 e 1970, com as hidrelétricas como principal fonte. Na época, o Brasil tinha domínio da tecnologia e uma grande oferta de recursos hídricos. Era a fonte mais viável para garantir energia em grande escala. Para levar a eletricidade das grandes usinas como Itaipu (PR) e Tucuruí (PA) para o resto do país, foi estruturado o sistema de transmissão. Ele é um grande conjunto de interconexões que liga as usinas geradoras às distribuidoras. ➡️ E há uma regra básica: só se pode gerar energia se houver consumo para absorvê-la. Ou seja, o sistema precisa estar sempre em equilíbrio. Sistema de transmissão brasileiro em 2025 Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) Nas últimas décadas, novas fontes passaram a integrar a matriz elétrica brasileira: primeiro a eólica, no início dos anos 2000, e depois a solar. Hoje, o país tem uma matriz mais diversa e cerca de 90% renovável — uma referência mundial. ➡️No entanto, a geração de energia cresceu em um ritmo maior do que a demanda. Em certos momentos, como um feriado ensolarado, há pouca demanda e muita geração, o que pode causar sobrecarga. O apagão mais tradicional acontece quando falta energia, mas o inverso — quando há excesso — também pode sobrecarregar o sistema e fazê-lo cair. Para manter o equilíbrio, quem acompanha em tempo real o que é gerado e consumido é o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Quando há energia sobrando, ele precisa fazer os cortes de geração. "A restrição de geração, curtailment, é um mecanismo de gestão de excedentes de energia que faz parte da operação. Não é uma escolha do ONS, mas uma medida necessária para preservar a segurança e a confiabilidade do Sistema Interligado Nacional (SIN)", afirmou o ONS em nota. Quando isso acontece, os parques eólicos precisam parar as turbinas, assim como as grandes usinas de energia solar. Segundo a ABEEólica, o prejuízo acumulado desde 2023 chega a R$ 5 bilhões. Já a Absolar estima que a geração solar centralizada perdeu R$ 1,2 bilhão apenas este ano, até 20 de setembro. Para tentar recuperar parte das perdas, usinas dos dois setores recorreram à Justiça. ➡️ Desde 2022, os cortes têm sido cada vez maiores, e neste ano, tem ocorrido todos os dias. De acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico e a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a tendência é que os cortes de geração de energia aumentem ainda mais. "A tendência é o aumento das restrições de geração por razão energética (quando há mais geração do que demanda), principalmente no período diurno, entre 9h e 16h, quando a geração fotovoltaica é mais intensa", afirmou o ONS. Em menor escala, os cortes também podem acontecer por falhas em equipamentos de transmissão ou em situações em que é preciso reduzir a geração para garantir a segurança do sistema. Para buscar alternativas, em março o Ministério de Minas e Energia (MME) criou um grupo de trabalho com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e o ONS. Ao g1, o MME informou que "entre as medidas já encaminhadas, estão a elaboração de diagnósticos técnicos sobre a natureza e a magnitude dos cortes, a proposição de soluções regulatórias e operacionais, além da priorização de obras de transmissão e da instalação de equipamentos que aumentem a confiabilidade da rede". Esse não é um desafio exclusivo do Brasil. Países que também ampliaram a participação das fontes renováveis em suas matrizes elétricas, como Estados Unidos, China e Austrália, enfrentam o mesmo desafio, de redimensionar o equilíbrio entre geração e consumo. Crescimento acelerado da ‘energia de telhado’ Especialistas do setor apontam outra causa importante para o curtailment: o avanço acelerado da Micro e Minigeração Distribuída (MMGD) - popularmente conhecida como “energia de telhado”. São os painéis solares instalados em residências e empresas, que se diferenciam da energia solar centralizada, produzida em grandes usinas. ☀️A “energia de telhado” ganhou um marco legal em 2022 e, impulsionada por incentivos financeiros que garantem bom retorno aos consumidores, vem crescendo rapidamente nos últimos anos. Esta modalidade já responde por 18,1% da capacidade instalada do país. E o ONS projeta que, até 2029, 24,2% da capacidade instalada do Brasil virá da geração distribuída. Essa energia também é injetada na rede elétrica de distribuição, mas o Operador Nacional do Sistema não tem controle direto sobre ela, por isso não entra no cálculo do curtailment. Do ponto de vista regulatório, a MMGD está classificada mais como consumidora do que como geradora. E como resolver? A resposta número 1 para esse problema, apontada tanto pelo ONS quanto por especialistas do setor, é o armazenamento: estocar a energia gerada pelo sol e pelo vento. A tendência mundial tem sido o investimento em baterias capazes de reter eletricidade nos momentos de sobra. "O ponto positivo é que o custo das baterias está caindo bastante, no mundo todo, muito puxado pelo mercado de veículos elétricos", explica Gustavo Ponte, superintendente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), empresa responsável por projetar e planejar o crescimento da energia no país nas próximas décadas. Outra frente é o aumento do consumo para acompanhar a expansão da geração. Isso deve ocorrer, principalmente, por dois movimentos: A chegada dos data centers de inteligência artificial, espaços que abrigam supercomputadores e consomem muita energia. O avanço do hidrogênio verde, que utiliza energia limpa em sua produção. Há também propostas de mudanças no sinal de preço, com a implementação de tarifas dinâmicas, com energia mais barata nos horários de maior geração, como entre 10h e 16h, e mais cara nos períodos de menor oferta. Assim, o consumidor poderia economizar ao, por exemplo, ligar a máquina de lavar ou carregar o carro elétrico durante o dia. "Um dos passos que o Brasil vai ter que enfrentar para o curtailment é uma educação do consumidor. Usar racionalmente energia é algo positivo. Não é um racionamento, esse termo ficou muito politicamente capturado. Mas deveria, como qualquer produto, ter alternativas no mercado, como essa questão do horário", disse Alexandre Viana, CEO da Envol, consultoria em energia. A Empresa de Pesquisa Energética citou também o uso de hidrelétricas reversíveis. "É uma hidrelétrica com dois reservatórios, que bombeia a água para cima nos momentos em que está sobrando energia e turbina a água para baixo, nos momentos que você mais precisa dessa geração", explicou Gustavo Ponte. O Operador Nacional do Sistema Elétrico estuda ainda a criação de Operadores do Sistema de Distribuição (DSO), que funcionariam como “controladores locais” do sistema elétrico, ajustando geração e consumo. "Em paralelo, o Operador vem atuando junto com o MME, Aneel e EPE para avançar em aprimoramentos no marco regulatório e na revisão de regulamentos e de políticas públicas, para equilibrar responsabilidades, aprimorar a eficiência alocativa e garantir eficiência operacional", informou o ONS. Também está em pauta a modernização e a expansão do sistema de transmissão. "Você tem uma tecnologia nova, num sistema antigo, então enquanto você não adaptar o sistema para essa nova tecnologia você tem um desbalanço", disse Jonathan Colombo, engenheiro e professor do MBA em ESG de Mudanças Climáticas e Transição Energética da FGV. Uma coisa é fato: a maior participação de renováveis impõe novos desafios, mas representa um avanço importante em direção à sustentabilidade. Para os especialistas, o Brasil está no caminho do que é considerado ideal, a combinação de diferentes fontes de energia, em vez da dependência quase exclusiva das hidrelétricas que marcou o século passado. "Hoje é uma combinação do que a gente chama de projetos híbridos, um projeto que vai combinar várias tecnologias. Como, por exemplo, eólico com solar, ou eólico com solar e bateria. O futuro está no que a gente chama na hibridização, a combinação de várias tecnologias", disse Colombo. a COP 30 e nosso futuro Hidrogênio verde será o combustível do futuro? Parque de energia eólica na Bahia. Paula Fróes/GOVBA