Quando começou a cursar artes visuais na Faculdade Paulista de Artes (FPA), no início dos anos 2000, Flávio Cerqueira ainda não havia tido a experiência de entrar num museu. Aos 6 anos, em 1989, ao perguntar ao pai o que era o prédio da Pinacoteca de São Paulo, edifício neorrenascentista da região da Luz, no Centro da capital, ouviu a resposta de que era um lugar onde não poderiam entrar, porque “era só para pessoas ricas”. Em 2001, de volta ao mesmo local, ele decidiu entrar para ver a exposição “Auguste Rodin: A Porta do Inferno”, que mudaria não só sua concepção de arte (e de seus espaços de exibição), como também orientaria sua produção pelas décadas seguintes. Inteligência artificial: ferramenta é atual preocupação quando se trata de gerar imagens de arte originais Em 2026: Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza terá obras de Rosana Paulino e Adriana Varejão Quase 25 anos depois, do encantamento com as peças em bronze do mestre francês, Cerqueira criou seu próprio repertório para o metal, transformando-o em obras que, em sua maioria, abordam a vivência de tantos jovens crescidos na periferia, como ele próprio. Hoje um dos mais reconhecidos escultores de sua geração, é ele quem promove filas de visitantes na porta dos museus com seu trabalho. Um exemplo é a panorâmica comemorativa de 15 anos de carreira “Flávio Cerqueira — Um escultor de significados”, que já havia acumulado um público de 216 mil pessoas desde dezembro do ano passado, ao circular pelas sedes do Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, Belo Horizonte e Brasília, e já passou de 30 mil desde a sua abertura no CCBB do Rio, semana passada. — É curiosa a relação com a Pinacoteca nesses dois momentos da minha vida. Primeiro como o menino que morava na Vila Maria (na Zona Norte de São Paulo), e depois cursando artes, mas sem essa perspectiva que teria futuramente — diz Cerqueira. — Quando entrei na faculdade, fazia bruxa e gnomo de durepóxi, queria ser hippie. Aí vejo ali uma estátua de bronze do Rodin de duas pessoas se beijando, não era o Caxias em cima do cavalo na praça. Eu quis trabalhar com bronze ali, entendendo que podia contar outras histórias. Pelas dificuldades trazidas pelo próprio material, Cerqueira conta que a formação com o bronze veio na prática, em cursos livres, em fundições e no convívio com profissionais que faziam peças para adornar sepulturas. Nos anos seguintes, o metal tomou forma do que via em sua vizinhança, nas ruas, no metrô. Até que, com quase uma década de carreira, a escultura “Amnésia” (2015) ganhou destaque em coletivas como “Queermuseu” (exposta no Santander Cultural, em Porto Alegre, em 2017, e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio, em 2018) e “Histórias Afro-Atlânticas” (2018), no Masp — no museu paulistano, a obra chegou a estampar peças gráficas da mostra. Além dela, o escultor trouxe ao Rio outras 39 peças, incluindo três inéditas. Numa delas, “Nunca foi a primeira opção”, vê-se um jovem de boné de crochê, óculos juliet e Nike Shox nos pés, pintando a frase-título na parede. — Também é um título autobiográfico, porque para muitas escolhas não fui a primeira opção. Mas me permiti não aceitar as primeiras opções oferecidas a pessoas como eu, de fazer um puxadinho em cima da casa da mãe e só sair do bairro para trabalhar. Isso gera identificação com o público, em vários lugares. Um jovem carioca pode vir aqui e se reconhecer, entender que também não precisa aceitar a primeira opção — comenta o escultor. — Sou um ser humano que cresceu na periferia, mas naveguei em várias camadas da sociedade. Meu trabalho fala de amor, de angústia, de ausência, da raiva,de assuntos que são humanos. Então cada pessoa entende e se reconhece a partir do próprio repertório. 'Escultor de mão cheia' Parceira de trabalho há uma década e colega de Flávio Cerqueira na academia — o escultor conclui ano que vem o doutorado em artes visuais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) — Lilia Schwarcz assina a curadoria. O processo, segundo a historiadora, antropóloga e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), é de troca intensa, com ela assinando o texto de abertura e o artista, os de parede. — Além de ter o domínio de todas as partes do processo, da criação à montagem das mostras, o Flávio é um intelectual, ele está discutindo proporção, profundidade, a expressão, a densidade do bronze — destaca Lilia. — O Flávio subverte esse material, historicamente usado para representar nossas elites, pelo valor e a dificuldade de fundição. Ali, a escultura de bronze, que vai atravessar o tempo, pode representar um menino negro, periférico. Para além da crítica social, tem uma qualidade estética enorme, ele é um escultor de mão cheia. O escultor entre as obras 'Tião' (2017) e 'Amnésia' (2015) Ana Branco Lilia também destaca que a mostra tem um núcleo dedicado ao processo de trabalho, com ferramentas, moldes em barro, látex e gesso, e bancadas trazidas do ateliê do escultor na Barra Funda, na Zona Oeste de São Paulo. — Quando abro meu ateliê ao público, trago meus objetos de uso pessoal, também estou me expondo — ressalta Cerqueira. — O quadro que está aqui é o que eu uso no dia a dia. Está manchado de tinta, de argila, porque faço anotações com a mão suja enquanto trabalho. É como se estivesse abrindo meu diário para o público. 'Nunca foi a primeira opção' (2024): uma das obras inéditas da mostra Ana Branco Numa vitrine, entre catálogos de mostras e publicações a seu respeito, está um caderno de prova de 2019 da Fuvest, responsável pelo vestibular da USP, em que uma das questões dissertativas está relacionada à imagem de “Amnésia”. Outro espaço conquistado pelo escultor, primeiro de sua família a ter um curso superior. — É importante que obras como as minhas e de outros artistas possam estar em provas, em livros escolares, também para uma formação simbólica. Crescemos com as figuras do Debret, do Rugendas nos nossos livros, e podemos trazer outras situações. A gente aprende pela retina — comenta. — Não é só mudar o olhar do menino pobre, mas de todo mundo. Já escutei uma colecionadora dizer que gosta das minhas esculturas, menos dos narizes, “que são muito largos”. Ou que o que faço “parece bandido”. Bandido para quem? Para mim, um cara de terno, colarinho branco e uma liminar na mão é mais bandido que um menino que não teve oportunidade.