Quando a soprano Berna Perles se ajoelhou, aos prantos, no palco do Auditório de Tenerife, na noite da última terça-feira (14), encerraram-se 54 anos de busca de nacionalidade europeia a que uma ópera brasileira tinha direito. A produção dirigida pelo espanhol Paco Azorín (cena) e o brasileiro Luiz Fernando Malheiro (música) foi aplaudida por cerca de 1.600 espectadores, conferindo à "Yerma", de Villa-Lobos, seu primeiro triunfo em solo espanhol. Tanto a crítica especializada quanto os diretores das principais casas líricas pareciam confusos com a descoberta de um “operón” de grandes proporções (são 3 horas de música), cantada desde sempre em espanhol e composta por um brasileiro, que jamais tinha sido executada nos palcos ibéricos. A história dessa obra espanta por sua tortuosa trajetória como órfã de seus dois "pais". Assassinado pelas forças fascistas em 1936, ano de início da Guerra Civil Espanhola, Federico García Lorca jamais conheceu Heitor Villa-Lobos. Por sua vez, o neto de espanhóis nascido no Rio jamais veria uma encenação (nem mesmo parcial) da ópera composta sob encomenda em 1956, sobre o texto em espanhol do poeta de Granada. Villa-Lobos morreria em 1959, 12 anos antes da estreia mundial de "Yerma" no ano de 1971, em Santa Fe, Novo México, EUA. Terra Natal de Villa-Lobos, o Rio veria o drama apenas em 1983, com a soprano Aurea Gomes e o tenor Benito Maresca respectivamente nos papéis de Yerma e Juan. Em 2020, uma nova montagem chegou a ser anunciada para a Cinelândia, mas desapareceu com a pandemia de Covid-19. Por tudo isso, foi histórica a primeira das quatro noites programadas no espantoso Auditório de Tenerife, projetado por Santiago Calatrava como uma vela soprada pelos ventos da África (a ilha fica a 300 km do território chamado de Saara Ocidental). Trata-se do primeiro palco da Espanha a sentir a eletricidade da "Yerma" contada por Villa-Lobos, sob direção cênica de Paco Azorín e regência do brasileiro Luiz Fernando Malheiro. O que se viu foi uma produção com belos recursos em vídeo, uso de uma piscina e de uma queda d’água cênica como exploração predatória do ambiente e metáfora da condição da mulher oprimida, e um papel que demanda tudo do registro de soprano, visceralmente interpretado por uma Berna Perles fulgurante, a todo o tempo no palco. A história é muito simples, enriquecida pela incrível capacidade de condensar sentimentos nos versos de Lorca: casada com o rude camponês Juan (Alejandro Roy, tenor), numa relação em que é rigidamente fiscalizada, Yerma não consegue engravidar, o que expõe publicamente a infelicidade do casal e conduz a suspeitas de que ela teria um caso com Victor (Javier Castañeda, barítono), o único homem que de fato a seduziu. Depois de cinco anos sem o bebê tão sonhado, ela participa de um ritual ministrado por uma benzedeira. Flagrada por Juan, que menospreza seus esforços e sonhos, ela acaba por assassinar o marido. Para Azorín, trata-se de uma ópera seriamente candidata a ocupar um lugar no repertório espanhol, “no mínimo com a mesma estatura de “A Vida Breve”, de Manuel de Falla”, talvez o melhor espelho de Villa nas terras do Quixote. É a primeira escala de uma coprodução que, além de Tenerife, envolveu o Corredor Criativo da Amazônia, uma entidade que congrega o Festival Amazonas de Ópera (FAO, Manaus) e o Theatro da Paz (Belém): os dois espaços receberão a coprodução em 2026. Em 2027, a última parada prevista dessa colaboração será o Teatro de La Zarzuela, Madri, como parte das comemorações do centenário da geração de Lorca. – A história dessa colaboração começa em 2023, durante o Festival Amazonas de Ópera, na reunião da OLA [Ópera Latino-América, entidade que congrega teatros dessa natureza] – conta José Luis Rivero, que há 20 anos dirige o Auditório de Tenerife, uma casa que, segundo ele, tem muito mais a ver com a identidade latino-americana. – Conversando sobre possíveis produções com Flávia Furtado [produtora-executiva do FAO], tocamos no tema de "Yerma", que o FAO e eu lhes disse: "Essa me interessa muito". Rivero – que também já produziu em Tenerife “Domitila”, de João Guilherme Ripper – explica que a busca por essa ópera na Espanha já vinha desde a gestão de Gerard Mortier (morto em 2014) como diretor do Teatro Real de Madri, mas não se obteve autorização por parte da Fundação García Lorca, que controlava os licenciamentos das obras do poeta até 2017, quando elas finalmente caíram em domínio público. O sucessor de Mortier no Real, Joan Matabosch, ainda tentaria levar adiante a empreitada de olho na produção carioca programada por André Heller-Lopes, malograda pela pandemia. Em meio a tudo isso, ainda havia um outro empecilho a se resolver, segundo Flávia Furtado. – Quando iniciamos a produção de "Yerma" no FAO de 2010, o que tínhamos era uma partitura manuscrita de Villa-Lobos. Ali ficou claro que ainda haveria outras correções a serem feitas, o que foi finalmente concluído pelo maestro Malheiro neste ano. Nossa visão como festival é que, se temos que honrar alguma tradição, é a dos antigos programadores do passado, que davam vazão à criatividade dos compositores. Ainda existem óperas brasileiras inéditas, e o FAO tem uma responsabilidade com o futuro e com o passado, na visão do Malheiro – afirma Furtado, que assinou nesta semana um convênio do Corredor Criativo da Amazônia [que também conta com o Teatro Colón de Bogotá] com a OEI [Organização dos Estados Ibero-Americanos]. Musicalmente, trata-se de um Villa-Lobos completamente diferente do que se está acostumado a ver. Aos 69 anos, o músico carioca estava em plena maturidade quando recebeu a encomenda de dois amigos americanos e construiu um tipo muito denso de música, bastante guiado pelo texto integral de Lorca e completamente diferente dos cromatismos próximos à música popular, tão marcantes nas Bachianas Brasileiras, mas também sem imitações do folclore espanhol. Segundo Luiz Fernando Malheiro, é “muito difícil” saber que rumos Villa-Lobos teria tomado caso não tivesse morrido em 1959, três anos depois de completar a obra. Agora ao menos já se sabe: depois de entrar pela Espanha mais africana, Villa caminhará pela Floresta Amazônica até chegar, em 2027, ao centro de Madri. *O jornalista viajou a convite do Auditório de Tenerife e do FAO.