Governo Tarcísio e ‘bancada da bala’ aceleram distribuição de pistolas, carabinas e até fuzis para guardas municipais no interior

O governo de São Paulo e parlamentares da “bancada da bala” vêm investindo de modo crescente no armamento de Guardas Civis Municipais pelo interior do estado. Se antes as verbas destinadas a essas corporações focavam na compra de câmeras, fardas, veículos e equipamento não letal, como tasers, restringindo o arsenal pesado a grandes cidades, agora a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) e a Assembleia Legislativa acenam com a distribuição massiva de pistolas e repasses para a aquisição até de carabinas e fuzis. Ex-delegado-geral de SP executado: sexto suspeito de envolvimento no assassinato de Ruy Ferraz Fontes é preso Condenação revertida: 'Um grande absurdo', diz advogada do homem solto após 15 anos preso por crime da 113 Sul A política de distribuição sistemática de armas de fogo a agentes municipais, que antes tinham as atribuições principais de zelar pelo patrimônio e colaborar com as polícias, começou nos governos tucanos de João Doria e Rodrigo Garcia, mas ganhou ainda mais força sob Tarcísio. O movimento é chancelado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2021, de que guardas municipais têm direito a portar arma e fazer policiamento ostensivo e prisões em flagrante, independentemente do tamanho da cidade. A aceleração na distribuição de armas pelo interior paulista ocorre em três frentes. Deputados interessados em propagar o discurso “linha-dura” contra o crime editam emendas impositivas ao orçamento, que precisam ser pagas obrigatoriamente pelo estado. O Executivo, por conta própria, tem autorizado ainda convênios para compra de material bélico, em parceria com as prefeituras. Por fim, o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, já determinou o repasse de pelo menos 1.444 armas da Polícia Civil para as Guardas Civis Metropolitanas (GCM), de acordo com levantamento do GLOBO a partir de despachos publicados no Diário Oficial. Sob o comando de Derrite, capitão da Polícia Militar que chegou ao cargo como deputado federal alinhado com o ex-presidente Jair Bolsonaro, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) entregou lotes de 12 a 250 pistolas calibre .40 modelo MD6, da Imbel, ou PT100 e PT840, da Taurus, para ao menos 21 cidades paulistas. A pasta não enviou detalhes sobre os equipamentos doados, que seriam 2.146 ao todo, alegando apenas que “todos os processos concretizados são publicados no Diário Oficial”, e ignorou pedido para que apontasse os convênios firmados no mesmo período. A doação está prevista em caso de atualização dos equipamentos, de acordo com uma lei proposta pela deputada estadual Carla Morando (PSDB) e sancionada pelo ex-governador João Doria, em março de 2021. A ideia da deputada na época era reforçar o armamento no ABC paulista, uma região populosa — São Bernardo do Campo, por exemplo, recebeu 500 revólveres de uma só vez naquele mesmo ano; o prefeito era marido da parlamentar. O entendimento firmado pelo Supremo, porém, permite agora ao governo paulista direcionar armas de fogo a municípios como Conchal (com 25 mil habitantes, recebeu 46 pistolas) e Serra Negra (com 29 mil habitantes, ficou com 34 pistolas). A pasta de Derrite alega que todos os equipamentos doados ficaram sem uso por conta da padronização das armas dos delegados e policiais civis em pistolas de calibre 9mm, mas o critério de distribuição não fica claro. Entre especialistas, há dúvidas sobre a eficácia da medida. O coronel da reserva da PM José Vicente da Silva Filho, ex-secretário Nacional de Segurança Pública, não vê necessidade de investimento em guardas de cidades que não têm histórico de violências, citando o caso de Serrana, de 45 mil habitantes, que recebeu 26 pistolas — e registrou dois homicídios ao longo do primeiro semestre, além de dois roubos de veículos. — Em municípios desses portes, e com poucos casos de crimes, só vejo necessidade de guarda municipal existir se for para ajudar naqueles problemas que eles têm, como cuidar da segurança das escolas, do pronto-socorro da cidade, ajudar no atendimento à população. Agora, para o patrulhamento, não tem o menor sentido. O que vemos são casos de prefeitos fantasiando atuações de segurança pública para ganhar votos — diz o ex-secretário. A “bancada da bala” reage às críticas com ironia. O deputado federal Delegado Palumbo (MDB-SP), que destinou emenda parlamentar para que Guarulhos pudesse comprar um veículo blindado, logo apelidado de “caveirão” em alusão aos carros da PM do Rio, afirma que o armamento de guardas civis em cidades menores veio para ficar e vai render frutos no futuro: — O bandido não quer morrer e procura oportunidade. Se em determinada cidade a guarda civil está armada, seja com fuzil, seja com pistola, ele vai procurar um local cuja guarda ainda utiliza cassetetes — alega o deputado. Em outubro de 2023, uma das primeiras cidades a receber as pistolas de presente foi Tatuí, de 123 mil habitantes, com 80 armas. O deputado Carlos Cezar (PL), líder do partido na Assembleia Legislativa do Estado (Alesp), alegou que o secretário havia atendido ao seu ofício, que por sua vez tinha partido de um suplente de vereador da cidade. Caminho semelhante ocorreu em Itararé, de 44 mil habitantes, cujo grupo político no poder é ligado ao presidente estadual do Progressistas, o deputado federal Maurício Neves (PP). Amigo pessoal do secretário, ele posou para fotos no evento. “As armas substituídas e que estão ainda em condições de uso não são descartadas, mas reaproveitadas pelas forças públicas municipais. A cessão é feita de acordo com os pedidos do poder municipal à SSP. O processo de doação, para ser concretizado, passa por uma série de etapas e complexa instrução processual que deve ser realizada pelas prefeituras interessadas. O não cumprimento de alguma dessas etapas inviabiliza a conclusão da doação”, afirma a pasta. Nos bastidores, um parlamentar governista diz que tudo é feito “na base da fila mesmo”, mas admite que são os próprios deputados que costumam levar o pedido. Segundo essa mesma fonte, próxima das forças de segurança pública, “pode ser que tenha alguma cidade em que a violência é um pouco maior no interior, que dê mais rápido do que as outras”. Ele alega ainda que a Polícia Civil acabou de adquirir 18 mil novas armas e que uma distribuição nessa mesma escala deve ocorrer nos próximos meses para as guardas municipais. Emenda para comprar fuzil A “bancada da bala” adota como meta a distribuição de armas para os guardas municipais do estado. Figuras como Capitão Telhada (PP), filho de um ex-comandante da Rota que inspirou Derrite a entrar na política, Tenente Coimbra (PL), outro PM influente nas redes sociais, e Letícia Aguiar (PL), deputada bolsonarista que se declara “madrinha da GCM”, aproveitam as emendas obrigatórias do orçamento para direcionar os convênios e bancar as aquisições, mais ou menos explícitas. Telhada destinou R$ 100 mil para Iperó equipar os agentes da GCM com pistolas 9mm, as mesmas defendidas como novo padrão da Polícia Civil. O município tem 36 mil habitantes. Coimbra reservou R$ 95 mil do orçamento para a compra de sete carabinas em Americana, de 237 mil habitantes, que já havia recebido doação de 95 pistolas. Aguiar foi além e determinou a aquisição de seis fuzis calibre 5.56 “Nato” para São José dos Campos, sua cidade natal e onde o vice-governador, Felício Ramuth, já foi prefeito. Ela também mandou R$ 80 mil para “armas longas e munições” a Aparecida, conhecida pelas romarias nesta época do ano e onde moram 32 mil pessoas. — O fuzil não é uma arma feita para a segurança pública. Isso já é um desvirtuamento que a gente tem observado no Brasil faz muito tempo, pois o fuzil é uma arma de longo alcance. Um fuzil dá tiro de um quilômetro. Quando se fala em segurança pública, você vai trabalhar com distâncias muito menores. Isso sem contar o impacto colateral — explica o pesquisador Roberto Uchôa, membro do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. — Infelizmente, há uma ideia no Brasil como um todo de que quanto mais armada a instituição, mais efetivo será o seu papel. Desde 2023, as emendas que fazem referência direta à “aquisição de material bélico” ou a tipos específicos de armas de fogo para a GCM demandaram pelo menos R$ 2,3 milhões dos cofres públicos. Sem contar com as verbas usadas para estande de tiro, coletes balísticos e carros blindados, que se justificam pelo confronto. A execução é feita de maneira descentralizada, o que dificulta saber quantos equipamentos foram efetivamente comprados com o dinheiro. Mas, considerando o preço médio definido pelo próprio governo para as pistolas doadas, o montante poderia bancar cerca de 1.200 armas. No caso dos convênios, Tarcísio assinou três autorizações para compra de armas para a GCM de Capela do Alto, Jundiaí e Serrana no fim de setembro. A gestão ainda deu aval para que a prefeitura de Salto de Pirapora usasse um saldo remanescente de outro contrato, no valor de R$ 46 mil, para comprar dois revólveres e centenas de munições de carabina e pistolas, além de coletes balísticos. O GLOBO verificou ainda a existência de pelo menos outros sete convênios sem detalhamento, mas referentes à aquisição de material bélico com essa finalidade, além da previsão de compra de outras 112 pistolas via município de Americana. Pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que 219 municípios paulistas contavam com guardas em 2023, sendo 49 apenas com armas não letais ou de nenhum tipo e 170 com armas de fogo em parte ou toda a corporação. Destas, 188 tinham órgão de controle, que poderiam ser internos, caso de 165 cidades, e/ou por ouvidoria, num total de 151. O panorama não foi atualizado pelo instituto desde então. No Brasil, as GCM armadas eram 396, dentre as 1.322 existentes, ou seja, numa tendência inversa à do estado de São Paulo.