A condenação do presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) durante o governo Bolsonaro, Marcelo Xavier, por perseguir servidores do órgão e lideranças originárias para pressionar pela liberação do Linhão de Tucuruí não é fruto de um caso isolado. A presidência da autarquia foi acusada de constranger funcionários após a morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari, em 2022. Cotado ao STF: Messias defende em parecer constitucionalidade de emendas Pix e impositivas Fernanda Torres, Anitta e Juliette: Artistas engrossam campanha para que Lula indique uma mulher ao STF A denúncia foi revelada em reportagem do GLOBO publicada em março de 2023. O texto mostra que, um mês após o assassinato do indigenista Maxciel Pereira dos Santos, em Tabatinga, na tríplice fronteira com a Colômbia e o Peru, em 2019, o então presidente substituto da Funai, Alcir Amaral Teixeira, ouviu em uma reunião relatos de temor de servidores e atuavam no Vale do Javari que temiam ser os próximos a serem executados. A reunião foi no dia 9 de outubro, mas Alcir afirmou que as denúncias não tinham consistência para serem investigadas e ainda lembrou que falsas denúncias de crime poderiam ser punidas por lei. — Logo que Maxciel foi assassinado, todos os servidores ficaram em pânico. Entrei em contato com a presidência por várias vezes, sem sucesso, e sequer queriam fazer uma nota de pesar pela morte dele. Depois vivemos essa situação surreal de ter o presidente da Funai na nossa frente desconfiando de nossos relatos e nos ameaçando indiretamente de que notícia de falso crime é crime também. Eu cheguei a questioná-lo sobre o que, para ele, configurava uma ameaça, não podia crer naquilo — lembrou ao GLOBO a indigenista Danielle Moreira Brasileiro, que atuava como coordenadora regional do Vale do Javari na época. De acordo com Danielle, a sensação de insegurança no Vale do Javari, que já não era tranquila, ficou ainda mais insustentável com a morte de Maxciel. Até então, a base de proteção do rio Ituí já havia sido atacada a tiros por pelos menos oito vezes. — Alcir duvidou e queria ir até a base do Ituí, onde pôde verificar as marcas dos tiros nas placas, mas sempre com desconfiança. Foi uma situação de completo assédio moral, pois afinal estávamos psicologicamente abalados, com uma lista dos próximos servidores ameaçados, sabendo que havia grupo criminoso envolvido. Foi total negligência e omissão dele — afirmou. Trecho da ata de reunião realizada no Vale do Javari um mês após a morte do colaborador Maxciel dos Santos Reprodução Segundo um trecho do documento obtido pelo GLOBO, Teixeira afirmou que não adiantaria investigar o caso porque "não traria resultados". "O Presidente Substituto salientou que os pedidos de exercício à distância de funcionários que se sentiram inseguros após o assassinato de Maxciel foram respondidos através do processo SEI n° 08744.000233/2019-39. Segundo ele, as ameaças alegadas por estes funcionários não possuem materialidade e não foram devidamente registradas. Ele ressaltou a necessidade destes registros serem feitos sempre que uma situação de ameaça for percebida, indicando os nomes das pessoas envolvidas na manifestação de tais ameaças. Para ele, apesar de ser possível a instauração de inquérito acerca destas ameaças, ele julga que o procedimento não trará resultados, pois não há materialidade nos casos de ameaça relatados, citando o artigo n° 340 do Código Penal, o qual institui que uma informação sobre ameaça feita sem evidência pode ser configurada como crime", diz trecho da ata. Danielle se recorda que dois meses antes de Maxciel ser assassinado, a Funai e o Exército tinham feito uma apreensão de redes dos pescadores ilegais, que foram queimadas na sequência. Logo depois disso, ela foi ameaçada pessoalmente por homens enviados por Ruben Villar, o Colômbia, investigado como mandante das mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, e agora, também como o contratante dos pistoleiros que executaram Maxciel. — Eles ficaram sabendo que as redes foram queimadas. Passaram na sede da Coordenação Regional duas ou três vezes até me encontrar. Um deles, de nome Chico Preto, falou textualmente que o Colômbia havia ficado revoltado com a ação da Funai e que nós deveríamos pagar o prejuízo calculado em R$ 15 mil e que isso não ficaria assim. Nesse dia, eles falaram que era o Colômbia que financiava eles — afirmou. Trecho da ata de reunião da Funai em que presidente Alcir diz a servidores que não há 'materialidade' nos casos de ameaça Reprodução Danielle prestou depoimentos ao Ministério Público Federal (MPF) sobre o episódio das redes e também à Polícia Federal, por mais de uma vez. As investigações sobre o caso, no entanto, não avançaram e a PF a chegou a opinar pelo arquivamento. O MPF foi contra. Um fonte da PF que acompanhou as investigações de perto afirmou que o assassinato de Maxciel só foi reaberto pela "pressão internacional" causada pelas mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips cerca de três anos depois. — Se naquela época as denúncias dos servidores tivessem sido levadas a sério, talvez, o destino de Bruno e Dom poderia ter sido diferente — afirma um dos investigadores. Procurado, Alcir Teixeira afirmou à época que se recordava "mais ou menos" da reunião. — O que eu pedi para eles foi que comprovassem as ameaças. Eles diziam que havia uma carta circulando, então pedi que me apresentasse alguma prova ou que registrassem queixa. Não houve materialidade. Essa é a palavra deles contra a minha — disse o ex-presidente da Funai. Questionado sobre o por que a Funai não pediu para aumentar a segurança dos servidores, Alcir disse que levou a reivindicação aos órgãos que deveriam cuidar disso. — Eu tive uma reunião com a Polícia Federal e a Civil e levei isso para eles. A Funai não tem competência de investigação, sim as polícias. Eu não tenho mais nada a declarar. A reportagem leu trecho da ata em que Teixeira afirma que investigar o caso "não traria resultados", ele então desligou o telefone. — A Funai de Brasília era totalmente antiindígena. Parecia que a gente era de um órgão inimigo. Ela vivia uma missão institucional totalmente diferente do que é a missão da Funai. O objetivo era barrar qualquer ação que fosse a favor de proteção e valorização dos povos indígenas, além de todo servidor que tentassse fazer isso ser alvo de perseguição, simbólica ou psicológica. Fomos totalmente abandonados pela Presidência — concluiu Danielle. Condenação de ex-presidente Marcelo Xavier foi condenado pela Justiça Federal do Amazonas a dez anos de prisão por perseguir servidores do órgão e lideranças originárias, além de pressionar pela liberação do Linhão de Tucuruí. A sentença assinada pelo juiz Thadeu José Piragibe Afonso na quarta-feira determina também o pagamento de cem dias-multa fixados em um salário mínimo e a perda do cargo público. Cabe recurso. Xavier atuou como delegado da Polícia Federal (PF) antes assumir a presidência da Funai, em julho de 2019. Ele foi exonerado do cargo em dezembro de 2022, às vésperas do início do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando o órgão foi incorporado ao Ministério dos Povos Indígenas. O ex-presidente da Funai foi alvo de uma ação de duas ações do Ministério Público Federal (MPF) sob acusação de denunciação caluniosa. Ele foi condenado, em ambos os processos, a cinco anos de prisão, por perseguir lideranças indígenas, servidores da Funai e um procurador da República com objetivo de liberar a obra do Linhão de Tucuruí. A obra consiste na construção de uma rede de transmissão de energia que, com 122km de extensão, pretende ligar o estado de Roraima ao sistema nacional. A área atravessa a reserva Waimiri Atroari que, em 2001, era composta por 913 pessoas. A denúncia afirma que Xavier atuou, em 2020, pela abertura de um inquérito na PF cujo alvo eram servidores e indígenas contrários ao empreendimento. Segundo a decisão, a atuação do ex-delegado provocou “danos concretos à reputação e à psique das vítimas, tanto individuais (servidores e procurador) quanto coletivos (povo Waimiri Atroari)”. “As vítimas, além de inocentes, não apresentavam qualquer motivação ou conduta criminosa. Sua inclusão nos procedimentos foi infundada tecnicamente, dolosa subjetivamente e instrumentalizada politicamente, somente porque contrariavam os interesses políticos de que o ex-presidente da Funai nutria devoção. De fato, para o ex-presidente, o Linhão era importante demais para não ser construído; ouvir as populações indígenas envolvidas seria algo oneroso demais apenas para pacificar primeiro os 'índios'. Ele deveria ser construído. Custe o que custasse”, diz o juiz. Em nota, a Funai afirmou que a instituição, como autarquia indigenista, e seus servidores, como os principais executores da política indigenista, "têm o dever de primar pela proteção dos direitos dos povos indígenas já reconhecidos constitucionalmente e, durante todo o processo, cumpriram com suas responsabilidades com os povos indígenas e também com o Estado brasileiro". "Desta forma, merecem justiça para que não paire dúvida diante da sociedade brasileira da importância do indigenismo", diz a Funai. Já a defesa de Xavier afirmou que recebeu a decisão com "perplexidade e indignação" e alegou que a atuação dele na presidência da Funai ocorreu "em estrito cumprimento do exercício legal". "(A defesa) declara que irá recorrer do decisório e que acredita e lutará até o fim pela reforma total da sentença, demonstrando, assim, sua total inocência", apontam os advogados. Entre as polêmicas que colecionou no cargo, Xavier não demarcou nenhum centímetro de terra indígena, promessa de campanha de Bolsonaro. Ele ainda pediu a Polícia Federal que abrisse um inquérito para investigar Sonia Guajajara, atual ministra, e outros ativistas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) por acusações que difamaram o governo federal.