"Hamnet: A Vida Antes de Hamlet", como o próprio subtítulo em português já diz, imagina quais seriam os motivos que levaram à criação de uma das maiores obras da dramaturgia mundial. Mas o longa, que encerrou o Festival do Rio 2025 no último dia 11, e que deve estrear oficialmente nos cinemas brasileiros em janeiro de 2026, quer discutir mais do que isso. Na verdade, o filme quer levar o espectador a entender como a arte tem o poder e a sensibilidade de transformar tragédias em nossas vidas e sentimentos como dor e perda em algo emocionante e arrebatador. Logo na primeira cena, o público é apresentado a Agnes (Jessie Buckley, de "A Filha Perdida" e "Entre Mulheres"), deitada em posição fetal numa floresta, cercada por raízes de uma árvore. A imagem se assemelha à barriga de uma mulher que está gerando uma criança em seu corpo. 'Hamnet: A Vida Depois de Hamlet' impressiona com drama envolvente Só essa sequência já mostra o apuro estético e a segurança que a diretora Chlóe Zhao (de "Nomadland" e "Eternos") tem para construir imagens belas e, ao mesmo tempo, tocantes, para não deixar ninguém desviar o olhar da tela. Além disso, Zhao quer deixar claro que o filme será todo conduzido pelo olhar de Agnes. A partir daí, a trama ambientada no século XVI mostra como a protagonista, que vive no interior da Inglaterra, um dia conhece um jovem chamado William Shakespeare (Paul Mescal, de "Aftersun" e "Gladiador II"), um aspirante a dramaturgo. Os dois logo se apaixonam, se casam (mesmo com uma certa resistência de suas famílias) e têm três filhos: as meninas Susanna (Bodhi Rae Breathnach), Judith (Olivia Lynes) e seu irmão gêmeo Hamnet (Jacobi Jupe). Porém, uma tragédia se abate sobre Hamnet, o que desestrutura toda a sua família, em especial, Agnes. Inconformada com a perda do filho, ela culpa o marido por não estar ao lado dele durante ocorrido, já que ele estava em Londres a trabalho. Enquanto Agnes fica mais reclusa e retraída, Shakespeare manifesta a sua dor a partir de um espetáculo teatral, que faz com que os dois encontrem uma maneira de compartilhar seus sentimentos. Paul Mescal interpreta William Shakespeare em 'Hamnet: A Vida Antes de Hamlet' Divulgação Para além do 'Ser ou Não Ser' "Hamnet: A Vida Antes de Hamlet" é uma das experiências mais intensas e emocionantes que o cinema americano recente foi capaz de criar. O filme lida com temas pesados como o luto e a revolta de perder tão cedo uma pessoa amada de forma honesta e palpável, sem parecer artificial e piegas, algo que poderia facilmente acontecer em tramas como essa. Mas Chloé Zhao consegue escapar habilmente dessas armadilhas e trata tudo relativo à história com respeito e sensibilidade, deixando o filme com um apelo irresistível. Quando o espectador percebe, já está totalmente imerso na trama e em seus personagens. O grande mérito disso, além da ótima direção de Zhao está no roteiro, escrito pela diretora e por Maggie O'Ferrell, que também escreveu o livro "Hamnet" (lançado no Brasil pela Editora Intrínseca), no qual o filme é baseado. O texto primoroso constrói muito bem os personagens, dando a eles profundidade e humanidade. Agnes (Jessie Buckley) sente a dor de perder um filho em 'Hamnet: A Vida Antes de Hamlet' Divulgação Assim, não fica difícil para o público criar empatia com Agnes, Shakespeare e sua família. Por isso, a dor que o casal sente ao perder o filho também pode ser sentida por quem assistir ao longa e se emocionar de verdade com o que acontece na telona. E quando a arte é usada para representar o efeito causado por essa perda, o resultado é não menos do que arrebatador. Outro elemento que merece destaque em "Hamnet" é a belíssima fotografia assinada por Lukasz Zal, de "Zona de Interesse". Além do uso de cores intensas, Zal impressiona na sequência final, de tão bela, que qualquer fotograma ou imagem congelada poderia ser emoldurada para ser colocada numa parede. A direção de artes e figurinos também chamam a atenção. Força da natureza Além da ótima direção e do roteiro muito bem escrito, o que fica na cabeça do espectador é o alto nível das atuações de elenco. Em especial a incrível performance de Jessie Buckley, que entrega aqui um de seus melhores trabalhos como atriz. Graças a uma grande sensibilidade e indiscutível talento, Buckley transmite com veracidade toda a trajetória de Agnes, desde a felicidade do primeiro amor, o sentimento de maternidade despertado após ter seus filhos (e a luta contra um trauma de infância por isso), até culminar com a angústia e dor de lidar com uma perda inesperada e dilacerante. Jessie Buckley (ao centro) interpreta Agnes em 'Hamnet: A Vida Antes de Hamlet', de Chloé Zhao Divulgação Com uma atuação tão autêntica, fica difícil o público não se comover e criar empatia com a protagonista e os conflitos que ela passa a sofrer à medida que a trama avança. Certamente o nome de Jessie Buckley será bastante lembrado na temporada de premiações e ela não só merece esse reconhecimento como os prêmios que pode levar por seu trabalho. Paul Mescal, assim como Buckley, tinha o desafio de tornar convincente um personagem complexo. E não era qualquer personagem, mas simplesmente um dos maiores nomes da dramaturgia do planeta. Felizmente, o ator se sai bem e consegue humanizar Shakespeare, removendo dele todos os elementos icônicos que poderiam jogá-lo num beco sem saída. Mas Mescal não deixa isso acontecer e, assim como sua parceira de cena, comove em vários momentos do filme. Um deles é quando, durante um ensaio de sua peça, ele repreende um ator por não conseguir dizer suas falas de maneira satisfatória. A reação de Shakespeare, que vai se intensificando à medida que o erro se repete, mostra que o incômodo não é só devido ao ensaio, mas também por algo que o faz sofrer, mas que não pôde extravasar até então, por ser uma pessoa mais contida do que sua esposa. Outro momento está no desfecho do longa, onde comove e emociona na dose certa. Shakespeare (Paul Mescal, de costas) lida com uma grande perda através da arte em 'Hamnet: A Vida Antes de Hamlet' Divulgação O resto do elenco também corresponde com performances eficientes. Em especial o jovem Jacobi Jupe, que interpreta o personagem-título com bastante carisma e, mesmo em curta participação, também colabora para que o drama do filme seja ainda mais envolvente. Com produção de Steven Spielberg e Sam Mendes (que quase dirigiu o longa), "Hamnet: A Vida Antes de Hamlet" é um filme que consegue a proeza de ter todos os seus elementos em seu devido lugar, sem maiores erros e deslizes. O resultado é uma obra que toca o coração de todos por contar tão bem sua história que ela se mostra atemporal e admirável. Assim como as principais obras de Shakespeare. Cartela resenha crítica g1 Arte/g1