'A Zona Norte ganhou estradas e perdeu praias. Isso representa um racismo ambiental', diz autor de livro sobre os aterros que mudaram o Rio

O crescimento da cidade por meio de aterros é um dos temas do livro “As Águas Encantadas da Baía de Guanabara”, lançado em 2021. Um de seus autores é o geógrafo Jorge Luiz Barbosa, de 66 anos, professor da UFF e coordenador do Instituto Comum Viver. Nessa entrevista, que faz parte da série "Aterros do Rio", que o GLOBO publica até amanhã, Jorge vê diferenças entre projetos que criaram aterros nas zonas Sul e Norte. Se o Aterro do Flamengo valorizou todo o entorno, as intervenções na Zona Norte fizeram sumir do mapa praias frequentadas por uma população de menor renda para construir estradas e implantar indústrias: “Isso configura um racismo ambiental”, afirma. Descubra: Centro do Rio perdeu lagoas que deram lugar a locais icônicos Veja o antes e o depois: praias e lagoas que foram aterradas no Rio Os aterros no Rio começaram no século XVIII, no período colonial. Qual foi a razão? A cidade cresceu ocupando encostas. Primeiro pelo Morro do Castelo (1567) e, depois, pelos morros de Santo Antônio, São Bento e Conceição. Com os anos, precisava de mais espaço para se expandir. As lagoas eram vistas pela população como locais sujos, que propagavam mosquitos que transmitiam doenças. E por essa razão precisavam ser aterradas. As condições ambientais eram ruins porque (as lagoas) eram contaminadas pelo esgoto da população. Mas elas nunca foram problema para os índios tupinambás, que habitavam o Rio antes da colonização. Os povos originais viviam da pesca artesanal e da coleta de caranguejo. A Praia de Santa Luzia, até o início do século XX, ia até a entrada da igreja de mesmo nome, no Centro do Rio Georges Leuzinger/IMS Que problemas foram provocados pelo aterro dessas lagoas? Provenientes da Europa, os moradores não conseguiam conviver com a natureza. Além de aterros, simplesmente construíram suas casas, sem se preocupar em implantar uma drenagem que compensasse o aumento da impermeabilidade do solo. As intervenções nesse sentido eram pontuais. A consequência foi que cada vez que chovia, as ruas da cidade ficavam tomadas por lama. Como explicar a decisão dos governos, já no século XX, de aterrar uma série de praias na Zona Norte? Todas as cidades sacrificam alguma região para implantar indústrias e novas vias. Só que no Rio, isso se deu de maneira mais intensa. A população dos subúrbios tinha uma boa interação com a orla da Zona Norte. Nas praias que desapareceram, havia prática de remo e de banhos à fantasia no carnaval, e os moradores chegavam de trem. Pelo mar, era possível chegar até próximo à Igreja da Penha de barco, que lotava na festa da santa. Mas, ao optar-se por um modelo mais rodoviarista, as praias sumiram para construir vias como a Avenida Brasil. Veja o que mudou com o tempo: em 215 anos de aterros, espelho d’água da Lagoa Rodrigo de Freitas encolheu pela metade; O senhor mesmo experimentou o impacto dessas mudanças. Hoje vivo na Tijuca, mas minha família era do Caju. Morei lá até os 25 anos. Minha casa ficava a uns 50 metros da Praia do Caju (aterrada para a construção da Ponte Rio-Niterói), que frequentava. Hoje, da Praia do Caju praticamente só existe uma placa de identificação . Qual a diferença dos aterros feitos na Zona Norte e na Zona Sul? Entendo que isso representa um racismo ambiental. A população afetada na Zona Norte tinha uma renda menor e era predominantemente preta. Enquanto isso, o Rio se expandia para atender a uma população de renda maior. Resultado: a Zona Norte ganhou estradas e perdeu praias da Bacia do Rio Inhaúma. Já na Zona Sul, a população foi contemplada com um espaço público de qualidade, o Aterro do Flamengo. Carroça usada em aterro da Lagoa Rodrigo de Freitas, em 1920. Ao fundo o Corcovado Acervo AGCRJ / Augusto Malta Entre as áreas na Zona Sul que foram aterradas está a Lagoa Rodrigo de Freitas. Quais foram as consequências para o local? No processo de urbanização e de valorização imobiliária, a opção foi remover as favelas (como a da Praia do Pinto e a da Catacumba). Para resistir a essas remoções, parte da população preta passou a se reunir em quilombos, como o do Sacopã. E novamente, a estratégia de ocupação do solo foi falha. Mas a redução do espelho d’água aumentou os casos de mortandade de peixes por falta de oxigênio, por ter desequilibrado o sistema. Foi necessário construir o canal do Jardim de Alah para garantir uma renovação constante das águas. Galerias Relacionadas