Tenho mergulhado em biografias nos últimos anos: já li, por exemplo, as vidas de Mao Tsé-Tung, São João Paulo II, Josef Stálin, Santo Agostinho, George Orwell, Winston Churchill, Ronald Reagan, Nelson Rodrigues, entre outros. As biografias têm um poder único entre os diferentes tipos literários: costumam voltar-se para o interior de uma única alma e buscam, nela, os meandros, trejeitos, erros, acertos, manias, virtudes heroicas ou — simplesmente — o cotidiano que compõe a trama da vida do biografado. + Leia mais notícias de Cultura em Oeste Se olharmos detidamente para as vidas desses grandes homens, sejam eles grandes por heroísmo, virtudes ou pecados malditos, conseguimos — apesar do atomismo que esse subgênero literário tem — identificar certas coisas comuns. Para além da espécie biológica e lados políticos, há algo mais profundo: a tomada de decisão que moldou a vida de cada um deles. Trata-se de um evento, uma tomada de consciência, um rompimento radical, um fracasso marcante, uma desilusão profunda etc. Todos os grandes homens que estudei nos últimos sete anos passaram por algum moment of conversion — como disse Richard Bradford em sua biografia de George Orwell. Leia também: Marxismo cultural e degradação moral , artigo de Ubiratan Jorge Iorio publicado na Edição 230 da Revista Oeste Mao Tsé-Tung, por exemplo, teve seu momento de conversão na ruptura com o confucionismo e na adesão ao marxismo revolucionário (1918-1921). Depois de se formar na Escola Normal de Hunan, Mao rompeu com o ideal confucionista herdado do pai e mergulhou nos textos radicais ocidentais, especialmente Marx e Kropotkin. O ponto simbólico é a fundação do Partido Comunista Chinês em 1921, do qual foi um dos 12 membros originais. Nesse período, Mao passa de intelectual provinciano a revolucionário profissional. Com São João Paulo II, o ponto de inflexão foi a morte do pai e a entrega total à vocação religiosa, entre 1941 e 1942 . Durante a ocupação nazista da Polônia, o então jovem Wojtyła perdeu o pai, o último membro vivo da família. Esse trauma marcou sua conversão interior definitiva, e o futuro papa fez de sua dor familiar, moral e social um combustível para a interiorização e apego à fé católica. Passou de estudante e ator a seminarista clandestino sob o regime de ocupação. O episódio é considerado o momento em que ele abandonou o teatro para servir inteiramente a Deus no sacerdócio. + Livros muito perigosos Filho de um sapateiro alcoólatra, Stálin estudava para o sacerdócio ortodoxo quando foi expulso — oficialmente por insubordinação, mas de fato por atividades revolucionárias clandestinas. E aí está o momento decisivo que forjou o Stálin dos expurgos de milhões, o líder comunista mais poderoso do século 20; a partir daquela expulsão, segundo Dmitri Volkogonov em seu livro Stalin , o jovem seminarista mergulhou na militância marxista, tornando-se agitador e ladrão de bancos para o partido. Com Santo Agostinho, talvez o ponto de virada de sua vida seja mais conhecido: depois de anos de vida mundana e adesão ao maniqueísmo, o filho de Santa Mônica viveu uma crise espiritual intensa relatada em As Confissões . O momento decisivo é o episódio do Tolle, lege — quando ouviu uma voz infantil dizendo “toma e lê”, abrindo a epístola de Paulo aos Romanos. Depois desse momento místico, ele se converte ao cristianismo e é batizado em Milão por Santo Ambrósio. Retrato de Santo Agostinho de Philippe de Champaigne, século XVII | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons Orwell, por sua vez, foi um socialista fabiano de gabinete, lutou na milícia do POUM em Barcelona e apoiava publicamente os líderes comunistas europeus. Porém, durante a Guerra Civil Espanhola, ele testemunhou a perseguição de comunistas ortodoxos contra socialistas dissidentes. Esse trauma o transformou num crítico feroz do totalitarismo — a base de Revolução dos Bichos e 1984 . A desilusão profunda com o socialismo real e a inexistente irmandade tanto apregoada pelos fundadores do comunismo levaram Orwell a mergulhar profundamente na observação e crítica do que uma mente ideológica carrega como ambição, prática e condição.
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