Terminada a série “Sob pressão”, da TV Globo, cuja última temporada foi lançada em 2022, Marjorie Estiano pensou sobre o quanto uma comédia seria bem-vinda como próximo trabalho. Uma espécie de alívio cômico para uma trajetória marcada por papéis imersos em dramas profundos, caso da médica Carolina, que vivenciava as angústias do sistema público de saúde brasileiro. “Lembro-me de pensar: ‘Não posso emburacar em outra coisa tão densa’”, conta a atriz, de 43 anos. Quis o destino que tais planos ficassem para depois. Ela interpretou Ruth, personagem com alta carga dramática na minissérie “Fim” (2023), do Globoplay, e volta ao ar no próximo dia 13 como protagonista de “Ângela Diniz: Assassinada e condenada”, da HBO Max, série inspirada no podcast “Praia dos Ossos”, da Rádio Novelo. Entrevista: Após superar câncer de mama raro, top Fernanda Motta diz que aprendeu a dizer 'não' e a fazer melhores escolhas Mankeeping: Entenda dinâmica em que mulheres se tornam 'terapeutas' dos companheiros IZA revela dores do puerpério: 'Não me sentia animal o suficiente para alimentar a minha cria' A obra de seis episódios tem direção de Andrucha Waddington e revive a história da socialite mineira assassinada em 1976, aos 32 anos. Ela foi morta com três tiros no rosto e um na nuca disparados pelo então companheiro, o empresário Doca Street (1934-2020), interpretado na série por Emilio Dantas. Além de ser uma história marcada pelo machismo e pela violência de gênero, a produção trouxe à atriz curitibana o desafio de mergulhar num universo radicalmente oposto ao seu. Conhecida como “Pantera de Minas”, Ângela vivenciou o glamour dos anos 1970 em meio à alta sociedade e às colunas sociais, algo muito diferente do estilo de vida de Marjorie, que mesmo explodindo como fenômeno adolescente em “Malhação”, no começo da carreira em 2004, manteve a discrição como condição inegociável. Um paradoxo que virou deleite. “Embora a Ângela tenha sido assassinada, pensei: ‘Finalmente, vou fazer uma mulher que transa, bebe e é dada ao prazer’”, afirma. “Foi uma trabalheira, tinha muito figurino, acessórios, maquiagem e cabelo, mas estava brincando de boneca com a caracterização.” Música: Céu celebra 20 anos de carreira com show no Rio Arte: Márcia Falcão leva pinturas inspiradas em corpos femininos à Bienal Ingrid Silva anuncia linha de meias-calças: 'Começo pela tonalidade da minha pele' A sensualidade aparece em evidência na série, numa construção muito além da aparência. Está na postura e no gestual da atriz, do rebolado à firmeza nas falas mais contundentes. “O Andrucha chegou a me perguntar se andava malhando com mais intensidade, mas não estava. Então, entendi que ele estava percebendo o meu corpo pela maneira como eu me portava em cena”, ela conta. A desenvoltura não foi necessariamente uma surpresa para o diretor, que diz ter pensado na escalação de Marjorie desde o início do projeto: “A Ângela precisava ser vivida por alguém capaz de incorporar a sua complexidade. Não haveria melhor pessoa para isso”. A despeito da alta dose de erotismo, tanto Marjorie quanto os idealizadores tomaram cuidados para não objetificar a personagem. Não há closes indiscretos nas cenas de sexo, que exploram mais as sensações do momento e foram todas acompanhadas por uma coordenadora de intimidade. Parte delas, inclusive, ficou de fora da série, após a montagem final. “Meu primeiro impulso foi construí-la sob a luz de um olhar masculino, no sentido de que ela despertava o desejo dos homens. Mas essa é a visão deles”, comenta a atriz. “Tivemos cuidado para não reduzi-la a este lugar. Era uma mulher livre e foi assassinada por não se submeter a nada, e não porque era bonita e provocava ciúmes ou fazia com que os homens perdessem a razão. Se não tivéssemos esse cuidado, esvaziaríamos o feminicídio, o estupro e a importunação.” ma Embora tenha sido brutalmente assassinada, Ângela teve a memória vilipendiada durante o julgamento de Doca, na década de 1970. Na ocasião, os advogados do réu usaram a tese de “legítima defesa da honra” — invalidada somente em 2023 pelo Supremo Tribunal Federal — para justificar o ato, e o autor recebeu uma pena de dois anos, que foi revogada. Com isso, acabou solto e, diante do resultado, movimentos feministas se mobilizaram em torno do caso. Um novo julgamento foi realizado na década de 1980, no qual o autor foi condenado a 15 anos de prisão. Um panorama que, segundo Marjorie, evidencia a urgência da série. “Continuamos morrendo por feminicídio”, diz. “O fato de ainda precisarmos nos preocupar sobre qual roupa usar, aonde e que horas ir ainda é um cerceamento. Isso sem falar nas cobranças sobre a aparência, na iniquidade salarial e nas questões ligadas ao aborto e ao não-direito ao próprio corpo.” Débora Falabella fala sobre maturidade: 'Mais tranquilidade do que aflição' Entrevista: Diagnosticada com esclerose múltipla, top Carol Ribeiro fala da convivência com a doença Entrevista: Marcelo Rubens Paiva fala sobre paternidade e sexualidade aos 66 anos Situações que a atriz consegue espelhar com a própria existência. Filha do meio de um comerciante e uma terapeuta, Marjorie se lembra de ser educada numa lógica em que os garotos deveriam ser vistos como ameaça, enquanto o irmão era incentivado a “pegar as menininhas”. “De alguma forma, isso influencia na maneira como você enxerga o outro”, reconhece. “O homem acredita que o corpo da mulher está acessível para ser tocado. Eu me lembro de, na escola, precisar proteger a bunda com a pasta, se não os meninos passavam a mão.” Resgatar essas memórias a faz pensar em como teria sido a própria vida, caso não fosse impactada pela cultura patriarcal. “É aquele clássico: o garoto pode, desde cedo, segurar o pinto, enquanto a menina não pode se tocar”, compara. “Eu abraçava os homens de lado, da maneira mais fraternal e debochada possível, para que não houvesse possibilidade de flerte. Esse é o tipo de comportamento que você vai assimilando de acordo com os tabus, os assédios e os olhares do outro.” Dos tempos de adolescente, Marjorie se recorda de não ficar à vontade nas festas nem sair para dançar. Por outro lado, estava preenchida pelo desejo de ser atriz, profissão que lembra ter escolhido ainda criança e perseguido com obstinação. Mudou-se para São Paulo aos 18 anos para correr atrás do sonho e, finalmente, pôde se soltar. O primeiro beijo, contudo, só veio aos 21. “Nunca pensei no amor da minha vida nem estava esperando a pessoa certa. Era zero romântica. Em vez de princesa, queria ser guerreira. Lembro-me de pensar: ‘Preciso saber como é beijar na boca’. Então, chamei um amigo para me auxiliar”, conta, em meio a risadas. Perfil: Cláudia Abreu rebate etarismo em comentários sobre aparência Cem anos de O GLOBO: Fernanda Montenegro, Laura Cardoso e Nathalia Timberg revisitam memórias Entrevista: Marisa Monte reflete sobre quase 40 anos de carreira e 58 de vida Decisão tomada pouco tempo antes de virar uma estrela nacional. Sua personagem Natasha, na novela “Malhação”, da TV Globo, era vocalista do grupo fictício Vagabanda, cujo hit “Você sempre será”, lançado também pela atriz em seu álbum de estreia como cantora, soma mais de 31 milhões de execuções no Spotify. Na época, Marjorie chegou a excursionar pelo Brasil com shows e lidava com fãs dormindo à sua espera na porta de hotéis e multidões de adolescentes sacolejando a van que a transportava para os shows. Tamanho sucesso, garante, jamais subiu à cabeça. “Meu desejo sempre foi ser atriz, construir personagens e contar histórias. Vivo um apaixonamento diário pela profissão”, diz. Postura testemunhada por Helena Varvaki, professora de atuação de Marjorie há quase 20 anos. “Ela me procurou porque estava com dificuldades em uma cena de ‘Duas Caras’’, conta Helena, sobre a novela que foi ao ar na TV Globo em 2007. “Estudaríamos por uma hora e meia e, já no primeiro dia, passamos desse tempo. Esse ser desejante de aprender cada vez mais já estava lá. O fato de ser hoje considerada uma das grandes atrizes de sua geração não faz com que estude menos. Pelo contrário. Para ‘Ângela’, começamos a nos ver um ano antes, cerca de quatro vezes por semana. Depois, quando começaram as gravações, ela seguiu estudando pelo menos três horas em dias de folga.” Além da série, Marjorie está nos filmes “Enterre seus mortos”, de Marco Dutra, que chega aos cinemas no próximo dia 30, e “Precisamos falar”, de Pedro Waddington e Rebeca Diniz, com estreia prevista para 2026. São, novamente, incursões em papéis diversos e complexos, que auxiliam a atriz a aprofundar a própria compreensão sobre o mundo e a elaborar suas questões, como a ideia de maternidade. “Sinto essa pressão tanto em relação a mim quanto às personagens, algo que sempre discuto com os roteiristas”, ilustra. “Nunca tive o sonho de me casar e ter filhos. Congelei óvulos, mas não pretendo usar, por enquanto. Só terei um filho se for um desejo insuportável.” Em um relacionamento com o médico Márcio Maranhão desde 2022, de quem mora próximo (“Assim está bom”, limita-se a comentar, soltando uma risada), a atriz aprecia a vida de um lugar mais confortável com a maturidade. “A adolescência foi a pior fase. Depois, quando entrei na TV, também foi difícil. Hoje, juntando análise, exercícios físicos e alimentação, descobri um ‘pool’ que me trouxe um prazer em estar viva. Estou sempre disposta a me desconstruir e reconstruir. Não é à toa que sou atriz. Eu me interesso por outros pensamentos, realidades. Até mesmo em relação ao sexo ainda há muita coisa que quero descobrir”, diz, antes de concluir: “Não estou na vida a passeio”.