Dignidade: o direito de existir no próprio espaço, do próprio jeito

Uma tia. Mas não aquela tia clássica, que “ficou para tia”, a bordar as roupas de todos, rezar pelos parentes e viver para cuidar dos outros. Não. Essa era a tia que havia de ser cuidada. A tia da minha amiga morreu há um mês e deixou toda a família desolada. Era daquelas presenças que, quando se vão, parecem levar consigo uma parte do mundo. Nascida com deficiência neurossensorial — ou, como se diz hoje, neurodivergente; ou, como se dizia no passado, “especial” — ela tinha recebido ao nascer uma sentença de prazo curto: “Não passará dos 30 anos”. Viveu 80. Enterrou avós, pais, irmãos, alguns sobrinhos. Viveu mais do que todos que, de alguma forma, tinham sido educados para cuidar dela, caso a matriarca da família faltasse. A mãe a criou com devoção heroica, movida por aquele medo que só as mães de filhos excepcionais conhecem: não o de perder a criança, mas o de morrer antes dela. “Quem vai cuidar dela quando eu não estiver mais aqui?” Quando soube da morte da tia, revivi o dia em que minha irmã Emi, que tinha Síndrome de Down, nos deixou. Todos nós, parentes de pessoas excepcionais, nos reconhecemos de longe. Há uma espécie de irmandade silenciosa, feita de um mesmo amor desmedido, de uma alegria incomparável e, também, do desamparo da certeza de que o amor não basta, de que o mundo ainda não sabe acolher quem é diferente. Eu vivi isso de perto. Quando minha madrasta morreu, deixou Emi e a escola fundada por ela, com outros 80 alunos. Assumi a direção por muitos anos, amparado por profissionais sérios e amorosos. Vi a ansiedade das famílias, o medo que cresce à medida que os pais envelhecem e os filhos permanecem dependentes. Aqueles anos foram literalmente a maior escola da minha vida. Hoje se fala muito em independência, e é claro que precisamos ensinar, estimular e acreditar na autonomia. Mas nós, os parentes, sabemos o que há por trás do discurso bonito. Que existe um limite duro e cruel, chamado preconceito, que impõe a fronteira entre o mundo dos “normais” e o mundo dos que não se encaixam. Daí sempre nos perguntarmos quem seriam, de fato, os neurodivergentes dessa história. Depois de uma vida inteira morando de favor na casa dos outros, a tia da minha amiga finalmente ganhara a sua. A sobrinha montou tudo: móveis, flores, cores, uma rotina. É claro que sempre foi tratada com muito amor pelos outros parentes, mas sabe como é. Dividir o quarto, depender da boa vontade alheia, estar sempre sob a pergunta silenciosa de “com quem vai ficar agora?”. Quando, enfim, teve o seu próprio lar, ela se tornou, pela primeira vez, senhora da própria vida. Talvez não tivesse plena consciência do que isso significava, mas sabia, lá no fundo, em algum lugar do coração, que aquilo era diferente, e melhor. Vaidosa, divertida, rueira, que adorava se maquiar e ir ao cabeleireiro para passear, a tia descobriu, nos últimos anos, a alegria de receber visitas, de abrir a sua própria porta para alguém. Ligava para a terra inteira fazendo o convite: “Vem me visitar?” Parece pouco, mas é imenso servir um café, escolher a toalhinha, o bolo que vai oferecer. Coisas simples para muitos, mas que para ela eram o símbolo máximo de uma conquista chamada dignidade: o direito de existir no próprio espaço, do próprio jeito. Talvez a verdadeira independência não esteja em viver sem ninguém, mas em viver com liberdade e respeito. Diante da ilusão de que somos nós que cuidamos deles, fortalece-se em mim a certeza de que, na realidade, são eles que cuidam para que não descuidemos da nossa humanidade.