Do K-pop ao samba: como a dublagem carioca dá sotaque brasileiro as produções coreanas

As produções audiovisuais sul-coreanas tomaram conta das plataformas de streaming disponíveis no Brasil e, com elas, uma nova vitrine se abriu para a dublagem carioca. “Miyeok-guk”, “Mió Guk” ou “sopa de algas marinhas”? Nos estúdios do Rio de Janeiro, tradutores, diretores e dubladores se debruçam sobre roteiros vindos do outro lado do mundo para fazer palavras, expressões e melodias distantes soarem naturais aos ouvidos brasileiros. Intérpretes da carioquice: influenciadores, humoristas, especialistas e acadêmicos tentam explicar o jeito único de ser do Rio Rio na cena: 226 gravações externas de 'Vale Tudo' transformaram a cidade em novela Referência nacional no setor ao lado de São Paulo, o Rio se tornou um polo de adaptação de filmes, realities e séries coreanas. Mas, para que essa moda chegue ao público com jeito brasileiro, é preciso um processo longo, técnico e cheio de criatividade dos profissionais da dublagem. — É comum pensar que a dublagem é uma tradução literal da obra original, mas não é. É adaptação. No coreano, por exemplo, a construção de uma frase é diferente da nossa. Você diz “eu coreano falo”, mas em português seria “eu falo coreano”. A dublagem é uma arte que começa na tradução — explica a tradutora Micaela Kim, conhecida como Mica. Filha de pais sul-coreanos, Mica foi alfabetizada nos dois idiomas e mantém laços estreitos com a Coreia do Sul. Ela conta que começou na área em 2020, por acaso. Hoje, é uma das principais responsáveis por tornar familiares os roteiros coreanos ao público brasileiro. — Um amigo produtor precisava de um tradutor de coreano e falou comigo, mas eu recusei. Queria fazer carreira em Tecnologia da Informação. Meses depois, com a pandemia, teve uma explosão nas demandas desse tipo de conteúdo. Ele voltou a falar comigo, mas dessa vez era para “apenas” revisar uma tradução. Não parei mais — relembra. Do “Annyeonghaseyo” ao “Bom dia, tudo bem?” Segundo Mica, o trabalho do tradutor de dublagem vai além de encontrar sinônimos. É preciso compreender ritmo, gestos, sons e cultura — e, acima de tudo —, ter criatividade para adaptar expressões que não possuem equivalência direta, algo comum na passagem do coreano para o português. Quem assiste a um k-drama, por exemplo, nem imagina que um “bom dia, tudo bem?” pode ser a saída para o “annyeonghaseyo” original. Embora o trabalho esteja ligado ao lip sync — a sincronização da fala com os movimentos da boca — realizado pelo dublador, é o tradutor quem sugere o texto. Tradutora Micaela Kim Acervo Pessoal — Se fosse pela tradução literal, essa expressão seria apenas um “oi”. Mas, para o lip sync, às vezes vira um “bom dia, tudo bem?” — explica Mica. Os termos de afeto “ôppá” e “nuná” também entram na lista de adaptações criativas, pois não possuem equivalentes diretos: Ôppá: usado por uma menina ou mulher para se referir a um irmão mais velho ou amigo próximo Nuná: usado por um menino ou homem para se referir a uma irmã mais velha ou amiga próxima Além desses, outra curiosidade é no sonido "RRR" — como se fosse a pessoa fosse arranhar a própria garganta. Os coreanos fazem este som quando querem dar ênfase ou exagerar. Segundo Mica, um bom exemplo para assimilar essa lógica é "essa comida tá muuuito gostosa". — A dublagem está bem feita quando você escuta com naturalidade uma personagem estrangeira falar português. É o que acontece hoje com as produções coreanas, que já têm muitos fãs associando uma voz a determinado ator ou atriz. Mas, para isso, há muito trabalho envolvido — destaca o diretor de dublagem Eduardo Drummond. Veja o antes e o depois de praias e lagoas que foram aterradas no Rio Hora da direção Se você imagina o diretor de dublagem como um mero espectador privilegiado, saiba que a realidade é bem diferente. O processo da dublagem passa por várias etapas: o estúdio recebe o pedido, o roteiro original é traduzido e revisado, um profissional divide a obra em loops — pequenos trechos com 20 segundos de fala — e, só então, o diretor entra em cena. Eduardo Drummond, Silvio Gonzales e Rafael Schubert, três dos principais nomes da direção carioca, explicam que muitas vezes “descobrem” a história quase junto com o público. O diretor de dublagem tem acesso ao material original cerca de um dia antes da gravação. Por isso, em séries com episódios semanais, ele descobre a história praticamente ao mesmo tempo que o público. Ainda assim, é tempo suficiente para orientar os dubladores. Rafael Schubert e Silvio Gonzales Alexandre Cassiano — Somos facilitadores. O dublador não tem acesso à obra com antecedência, então ele grava em cima do que aparece na hora — explica Rafael Schubert. — Precisamos passar o máximo de informações possíveis sobre o personagem e a história, além de ajudar no encaixe do lip sync — completa Silvio Gonzales. Com mais de uma década de experiência, a dupla, que costuma assinar seus trabalhos em conjunto, explica também a diferença entre dirigir uma obra americana e uma sul-coreana — as duas maiores demandas do mercado de dublagem no Brasil. — Nas produções coreanas, nos dedicamos mais às adaptações. Mesmo com as sugestões dos tradutores, há detalhes que só surgem durante a gravação — diz Rafael. — Os coreanos possuem o fim de fala mais alongado que o nosso, por exemplo, então nem sempre é fácil para o dublador encontrar o tempo ou o modo certo para a abertura e o fechamento da boca — conclui Silvio. Roda a Saia, cultura indígena, moda e circo: Zona Sul terá sábado cheio de eventos; veja a programação Eduardo Drummond lembra ainda que faz parte da direção a escala de personagens. Cada obra tem um critério, e em seu último trabalho, Guerreiras do K-pop, ele contou com um profissional essencial: o diretor musical. — Na Coreia do Sul, eles usam um dublador para a fala e outro para a música. Mas o Dudu queria uma pessoa para as duas funções, porque é mais natural para nossos ouvidos. Então, consideramos características vocais e musicais, além de adaptarmos letras — conta Marcus Eni, diretor musical do projeto. As vozes Após traduções, observações e adaptações, chega o momento de oferecer uma voz brasileira ao personagem estrangeiro. Para essa tarefa, são convocados os dubladores. Diferente dos atores de teatro ou cinema, eles não têm tempo de preparação: são chamados ao estúdio para gravar e descobrem o que vão dublar instantes antes de entrarem na cabine. — Você precisa juntar as informações e encontrar sua interpretação quase que de forma instantânea. É diferente do teatro ou do cinema. Na dublagem, o personagem já existe e temos que nos adaptar a ele — conta Analu Pimenta, a voz de Rumi em Guerreiras do K-pop. As guerreiras do K-pop brasileiro: Vic Brown (a Mira), Analu (a Rumi) e Taís Feijó (a Zoey) Alexandre Cassiano No mercado desde 2013, Taís Feijó, que dá voz à Zoey, explica que, embora as produções sul-coreanas estejam cada vez mais populares, elas ainda representam desafios para os dubladores. — As produções coreanas têm mais minimalismo e naturalidade. Então, aos poucos, fomos aprendendo a trabalhar nesse lugar, diferente da intensidade à qual estamos acostumados — afirma. Junto com Vic Brow, Analu e Taís formam as Huntrix brasileiras, protagonistas do filme da Netflix mais assistido no mundo. Contam que, no Brasil, o aumento das obras coreanas fez crescer também o número de fãs da dublagem — e com isso, surgem histórias curiosas. — Uma vez, uma fã me perguntou o que eu pensava de um personagem de um k-drama do qual participei. Só que eu nem sabia que personagem era esse, porque ainda não tinha conseguido assistir à obra e meu boneco não tinha relação com ele — relembra Vic Brow. Muito estudo Marcos Cavalcanti (responsável pela escola de dublagem dublemix), Cid Fernandes, Jeane Marie e Filipe Gimenez Leo Martins Para dublar no Rio, é preciso primeiro se formar em atuação. Depois, com o certificado de ator ou atriz profissional em mãos, o aspirante deve procurar uma escola de dublagem e passar por uma nova formação. O processo não é rápido: pode levar de quatro a seis anos. Ainda assim, muitos dubladores continuam estudando mesmo depois de formados. Esse é o caso de Filipe Gimenez, Jeane Marie e Cid Fernandes, que, mesmo experientes, seguem frequentando as salas de aula. — A escola ensina a técnica do lip sync, a adaptação a outras culturas e a busca pela naturalidade — explica Cid Fernandes. — Ela também mostra como entrar no mercado de trabalho, que não é simples, especialmente em relação ao pagamento do dublador — complementa Jeane. Profissionais autônomos, os dubladores são contratados por obra e recebem pela hora de trabalho, calculada com base nos loops — trechos de até 20 segundos de fala. É também nas escolas que aprendem essa metodologia de cobrança. — De um a vinte loops, você recebe o equivalente a uma hora de dublagem. Mas isso não significa que vá trabalhar por uma hora, porque o tempo de gravação varia. É curioso, mas as escolas ajudam a entender isso — conclui Filipe. Assim, entre loops e adaptações, lip sync e interpretações, a dublagem carioca reafirma seu papel histórico como um dos principais polos de dublagem no país — agora também com as produções coreanas.