
HIV: Europa aprova injeção semestral que previne a infecção em quase 100%
A Agência Europeia de Medicamentos (EMA, da sigla em inglês), autorizou a comercialização do lenacapavir, primeiro medicamento injetável a cada seis meses para prevenir a infecção pelo HIV. O fármaco, aprovado também nos Estados Unidos, no final de junho, foi desenvolvido pelo laboratório Gilead Sciences e será vendido no continente europeu com o nome comercial de Yeytuo. O remédio é considerado inovador por demandar apenas duas aplicações ao ano para garantir uma eficácia de quase 100% contra o HIV. Hoje, já existe uma estratégia de Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP), disponível inclusive no SUS desde 2017, mas que envolve comprimidos diários. Eles também reduzem o risco de uma infecção a quase zero, mas o fato de precisarem ser tomados todos os dias é um entrave para a adesão. “A PrEP é um pilar no controle do HIV na Europa e no mundo, sendo muito eficaz na prevenção de infecções quando usada conforme prescrito. No entanto, sua adesão e utilização costumam ser inferiores ao ideal, devido ao acesso limitado a alguns medicamentos e ao fato de que outros exigem administração diária rigorosa”, explica a agência europeia em nota. A EMA analisou o lenacapavir dentro de um cronograma acelerado por “ser considerado de grande interesse para a saúde pública na União Europeia e no restante do mundo”. O medicamento foi aprovado para adultos e adolescentes em maior risco de exposição ao HIV, com o único requisito de terem pelo menos 35 kg. “O rápido processo de autorização do Yeytuo pela Comissão Europeia reforça a solidez de nossos dados clínicos e o potencial transformador do Yeytuo para ajudar a suprir a necessidade urgente de prevenção do HIV em toda a Europa”, celebrou Dietmar Berger, MD, diretor médico da Gilead Sciences, em nota. Em julho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) também passou a recomendar o lenacapavir para evitar a infecção pelo vírus, no que chamou de “uma ação política histórica que poderia ajudar a remodelar a resposta global ao HIV”. — Enquanto uma vacina contra o HIV continua fora de alcance, o lenacapavir é a melhor alternativa: um antirretroviral de longa duração que, em testes, demonstrou prevenir quase todas as infecções por HIV entre pessoas em risco — disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, no lançamento das novas diretrizes. Até então, a PrEP mais avançada a oferecer uma prevenção duradoura era o cabotegravir, da GSK, também injetável, mas aplicado a cada dois meses. Ele chegou a ser aprovado pela Anvisa em junho do ano passado, tem custo elevado. Agora, o lenacapavir surge como uma estratégia promissora por promover a alta eficácia com somente uma aplicação a cada semestre. Uma questão, porém, é também o preço. A Gilead cobra mais de 28 mil dólares por pessoa a cada ano nos Estados Unidos (cerca de R$ 152 mil na cotação atual). Para o professor Andrew Grulich, do Instituto Kirby de pesquisa para o HIV, o custo é “absolutamente insano” e faz com que nenhum sistema de saúde no mundo consiga implementar o lenacapavir. Em outubro, a farmacêutica anunciou acordos com seis fabricantes para produzir e vender versões genéricas do medicamento em 120 países de alta incidência de HIV e com recursos limitados, principalmente os de média e baixa renda. A comercialização só poderá ser feita após aval das agências reguladoras dos locais. O Brasil ficou de fora, assim como outros países importantes da América do Sul, Ásia e Europa, o que foi criticado por pesquisadores da Universidade de Liverpool, no Reino Unido, autores de um estudo que estimou que o remédio poderia ser vendido por somente 25 dólares e ainda gerar lucro. Eficácia de quase 100% Um primeiro estudo clínico com o lenacapavir, chamado de Purpose-1, analisou o tratamento entre 5,3 mil mulheres cisgênero (que se identificam com o gênero atribuído a elas ao nascerem) na África do Sul e na Uganda. Nenhuma das que receberam o medicamento foram infectadas durante cerca de dois anos, enquanto 55 diagnósticos foram observados nos grupos que usaram a PrEP oral. A eficácia das injeções foi considerada de 100%. Outro estudo mais diverso, o Purpose-2, englobou 3,3 mil participantes de diferentes gêneros, como homens cis e pessoas trans, e de diferentes etnias em 88 centros de pesquisa no Peru, Brasil, Argentina, México, África do Sul, Tailândia e Estados Unidos. No final do estudo, apenas dois casos de HIV foram identificados entre os que receberam o lenacapavir, e 9 entre os que tomavam PrEP oral. Comparando com a incidência do HIV em uma amostra separada de 4,6 pessoas da população geral, que não receberam os medicamentos, os resultados mostraram uma eficácia de 96% associada às injeções semestrais. Além disso, confirmou que a estratégia é mais eficaz que os comprimidos. Ambos os trabalhos foram publicados na revista científica New England Journal of Medicine (NEJM). Por que a injeção não é uma vacina? Embora o remédio seja uma injeção para prevenir uma doença infecciosa, o lenacapavir não é uma vacina. Isso porque, assim como a PrEP em comprimidos, ele não induz o sistema imunológico a produzir anticorpos e células de defesa contra o HIV. Ele é um antiviral que bloqueia os "caminhos" que o vírus utiliza para se replicar e, para isso, precisa permanecer em constante circulação no organismo. De forma mais detalhada, uma vacina é feita com o material genético de um vírus ou bactéria para que o sistema imune o reconheça a partir daquele fragmento e, com isso, passe a produzir as defesas contra ele. Dessa forma, simula a exposição àquele agente infeccioso para gerar a resposta imune, que se mantém ao longo do tempo. Já no caso da PrEP, é um remédio que não induz uma resposta ativa do sistema imunológico. Ele combate o vírus diretamente, sendo usado também para tratar pessoas que já vivem com a infecção. Nessa estratégia, o objetivo é manter a droga em constante circulação no sangue para, se a pessoa entrar em contato com o HIV, ela já estar presente e rapidamente atacá-lo, antes mesmo que ele se instale e cause a infecção. Por isso, caso a administração da PrEP seja interrompida, a proteção desaparece. Já as vacinas, por outro lado, podem até demandar novas doses de reforço para elevar a resposta do sistema imune ao longo do tempo, mas a proteção em algum nível se mantém duradoura. Não existem vacinas aprovadas contra o HIV no mundo.